Perfil dos alunos – a carroça à frente dos bois

O documento parece mesmo ter sido forjado para uma concordância geral, e, se for o que se pretende ouvir, muito bem, concordamos. Mas, agora a sério, e a sua utilidade?

O documento de referência “Perfil dos alunos para o Para o Século XXI/Perfil dos alunos à saída da Escolaridade Obrigatória” estreia com a pretensão de um título pomposo, evocativo de todas as tentativas – de resto, goradas – de credenciar a área da Educação, desacreditada a partir dos anos 1990 e, em especial, mais recentemente em legislatura do Partido Socialista, por mão da ex-ministra Maria de Lurdes Rodrigues. O título do documento, além de pomposo, rasa o parolo, para empregar um vulgarismo, reproduzindo todas as tentativas pretéritas falhadas para inovar, mantendo a fórmula do bom embrulho a ocultar a vacuidade – novas antenas continuam a difundir as velhas asneiras, diria Brecht. Considerar-se-ão, porventura, o “Perfil dos alunos à entrada na Escolaridade Obrigatória”, o “Perfil dos alunos durante a Escolaridade Obrigatória”, o “Perfil dos alunos no contexto dos valores e da disciplina nas escolas” e, em especial, o “Perfil, progressão e valorização laboral dos professores no Sistema Educativo”?

Serve-se ainda o documento do clássico esquema de prefácio impoluto, a que pretende emprestar uma roupagem humanista e ética, ao estilo do espírito da lei geral ou dos princípios orientadores da Constituição da República – também isso não é novo e, em geral, em bom modo de prática política, serve para levantar aquela nuvem de poeira que embota a vista. Para um discurso que busca, a todo o custo, enfatizar o carácter não padronizado do “perfil dos alunos” (“não visa qualquer tentativa uniformizadora”; “com necessária flexibilização”; “condições de equilíbrio”; não se adopta uma fórmula única”; “recusa de receitas ou da rigidez”), as marcas da linguagem argumentativa impositiva usadas por Guilherme Martins são demasiado notórias: quatro recorrências à locução “abriga a”, duas recorrências à locução dos complexos verbais com obrigatoriedade (“dever + infinitivo”); três recorrências à locução “ter de”. Ficamos esclarecidos.

Os autores, dez, reputados em várias áreas do conhecimento, outorgam ao documento a sua validade, facto que não invalida elevada dose de relatividade – que outros dez (sem falar em consultores) forjariam documento afim ou díspar?

Do conteúdo não há a dizer muito, senão que se baseia, sensivelmente, na verdade do amigo banana: conclui-se que é necessário implicar uma série de valores (são referidos cinco itens, a que se cola o epíteto “elementos e características éticas”) naquilo que é a consecução de competências-chave (dez) e que estas garantirão a idílica apropriação da vida, “nas dimensões do belo, da verdade, do bem, do justo e do sustentável, no final dos 12 anos de escolaridade obrigatória”. Ora, este plano de intenções não estará já subjacente àquilo que a escola, na sua missão de cidadania, pressupõe? Donde a novidade, então?

Garantem-nos os subscritores do documento, teimando, que o mundo ou a vida se acham em constante e rápida mudança e que os paradigmas educacionais têm de se lhe adaptar – como se se acabasse de descobrir o ovo de Colombo. Na realidade, o mundo muda, mas a mudança, se tomada pelos princípios dos valores enumerados e pelas dimensões a que justamente se interligam, é mínima. O que muda, não sendo os imutáveis valores por que se regem as sociedades, é o modo como nos apropriamos dos conhecimentos – muda a técnica, por meio da tecnologia, e sobretudo mudam os meios. Creio que esta deve ser a maior preocupação dos agentes que teorizam o ensino. De resto, parece quase risível que se afirme que a adopção deste perfil do aluno seja imperiosa “para que todos possam ser incluídos” (p. 8), como se a exclusão fosse parcialmente tolerável fora dele. Nessa mesma “carta de princípios” delira-se, quando se idealiza uma “revolução numa qualquer área do saber”, esquecendo que as revoluções respeitam planos mínimos e surgem, quase sempre, em contextos de adversidade, oportunidade e acaso.

Não creio ser este o caso de um documento suscitar polémica – pelo contrário, podemos estar todos de acordo. Aliás, parece mesmo ter sido forjado para uma concordância geral, e, se for o que se pretende ouvir, muito bem, concordamos. Mas, agora a sério, e a sua utilidade?

 

 

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