“Nunca poderia admitir em público que o país estava a caminho da bancarrota”

O ex-Presidente considera ter ido " até ao limite do que é constitucional um PR fazer", no que respeita à condução da política económica do Governo de Sócrates.

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Cavaco ao PÚBLICO: "Em 1 de Janeiro de 2010, eu disse que Portugal caminhava para uma situação explosiva" Rui Gaudêncio

Cavaco lembra que alertou para a situação financeira grave em Janeiro de 2010, mas argumenta que não podia fazer mais para evitar um resgate.

Várias vezes escreve que conseguiu “evitar problemas mais graves do que aqueles com que os portugueses foram confrontados”. O que é que podia ter corrido pior do que um resgate?
Tem alguma razão. Mas devo dizer-lhe que evitar que o novo aeroporto de Lisboa ficasse sediado na Ota, o que estava decidido quando cheguei a PR, tinha sido um prejuízo dramático para o país. Isso forçou-me a ler todos os estudos que no passado tinham sido feitos, um em 1972, outro em 1982, um em 1999. Li centenas de páginas, porque se tratava de uma questão técnica. Tinha de conseguir demonstrar que havia um erro técnico na localização do novo aeroporto de Lisboa na Ota. E foram dois anos que demorou toda essa demonstração. O primeiro-ministro, devo dizer, teve uma atitude correcta, nesse ponto. As reuniões eram bastante normais, com concordâncias e discordâncias, mas ouvimos os argumentos um do outro.

Foi o problema mais grave que teve?
Penso que dei aí um importante contributo para evitar um erro que teria tido custos muito grandes para o país e que teria eventualmente acelerado tudo aquilo que acaba de referir. Porque logo a seguir temos também o TGV, a terceira Ponte sobre o Tejo, as auto-estradas. E aí havia uma discordância clara da minha parte em relação a esses investimentos naquilo que se chama os sectores de bens não transaccionáveis, os sectores protegidos. Era uma discordância muito clara, porque Portugal tinha um grande desequilíbrio externo, cerca de 10% do PIB. Tinha um grande endividamento externo, os mercados a fecharem-se, muita dificuldade em obter crédito e, portanto, havia uma orientação da política económica que eu considerava errada. Ia tentando convencer o primeiro-ministro a alterar, mas como é óbvio eu não consigo mudar a orientação global de política económica de um Governo.

Mas não se esqueça que, em 1 de Janeiro de 2010, eu disse que Portugal caminhava para uma situação explosiva. Isto é, nesse caso eu fui até ao limite do que é constitucional um PR fazer. Depois de muita conversa em privado, discreta, só fiz nessa altura (e depois mais algumas vezes) declarações públicas. Só passava para a intervenção no discurso público quando considerava que de forma discreta e em privado não conseguia alterar. Tinha a percepção que, se nós não mudássemos, podia-nos acontecer o mesmo que aconteceu à Grécia em Maio de 2010, à Irlanda em Dezembro de 2010. Mas um PR nunca pode admitir em público que está a caminho de uma situação de bancarrota, tem que ser muito contido nas palavras que utiliza. Imagine o que seria o impacto internacional e nacional se eu falasse na possibilidade de resgate.

Em relação ao aeroporto elenca vários estudos, sendo que nenhum apontava o Montijo como uma opção, antes Alcochete. Tanto tempo depois faz sentido que se retome uma localização que nos estudos que leu, enquanto PR, nunca era referido?
A localização é um problema técnico, a escolha é um problema político. Não estou neste momento em condições de lhe dizer se era preferível fazer esta escolha que o Governo fez. Até houve um homem que veio do Porto falar comigo, especialista no desenvolvimento do low cost, que sugeria ir para Alcochete mas desenvolvendo [o aeroporto] de forma gradual. Mas a opção foi outra.

O país não aprendeu a tomar decisões fundamentadas em estudos, em análises de custo-benefício?
Ao longo de todo o livro eu menciono que é fundamental fazer análise de custos-benefícios. Até dou o exemplo de um discurso que fiz em Penafiel em que disse mais ou menos o seguinte: quando se constrói uma auto-estrada nova há sempre alguém que beneficia - aqueles que constroem. E às vezes há confusão entre o custo e o benefício. Chega-se a pensar que a construção de auto-estradas foi um benefício, mas o benefício é o número de utentes que lá vão passar no futuro. Se não passar ninguém...

Refere isso várias vezes no livro.
É isso. Mas em relação ao que se passa neste momento e às decisões que estão a ser tomadas, não queria fazer juízos.

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