É quando não é compreendido "que se vê a fibra de um Presidente”

O distanciamento dos media é "fundamental para a dignidade de um PR". E a incompreensão um desafio à "fibra" de um Presidente. Para Cavaco, a história só julgará no médio prazo. Entrevista exclusiva a propósito do seu novo livro.

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É quando não é compreendido "que se vê a fibra de um Presidente” São José Almeida, Sibila Lind, David Dinis

Em dez anos de mandato, Cavaco vê a luta contra o Estatuto dos Açores como a mais simbólica que teve: lutou contra todos, mas diz que tinha razão. Sobre Costa, fala muito pouco, sobre Passos apenas reconhece o seu "esforço" para manter o seu Governo de pé. O próximo livro ainda não tem data.

Apenas agora, passada mais de uma década de sair de Belém, Jorge Sampaio lança a parte da sua biografia em que fala dos seus mandatos como PR. Por que é que o seu livro aparece tão mais cedo? Sente que saiu incompreendido de Belém?
O meu livro aparece cerca oito meses depois de sair de sair de Presidente da República, no que se refere à entrega do manuscrito à editora, e tendo o livro 52 capítulos era obviamente impossível escrevê-los todos em tão curto espaço de tempo. O que significa que a primeira parte estava já estava escrita há algum tempo - e mesmo o esquema da última parte já estava concebido. Com certeza que não queria que eu esperasse até aos 85 anos ou 90 anos para escrever a minha autobiografia política. 

Pessoas da sua área política, Marques Mendes e Assunção Cristas, disseram que talvez fosse cedo demais, tendo em conta as revelações que faz das conversas em Belém. Não sei se ouviu e leu?
Eu sou muito selectivo naquilo que leio e ouço. No período de férias, no mês de Agosto, passo 30 dias sem abrir a televisão para ouvir notícias, algo extremamente saudável. Mas escrevi o livro para prestar contas aos portugueses pela forma como executei as funções de PR. Disponibilizando informação que penso que é bastante rigorosa para que, de uma forma informada, tão objectiva quanto possível, os portugueses possam fazer o seu juízo. Quem quer que seja, quem presta contas, tem a obrigação de ser rigoroso nas contas. 

Mas sente que saiu incompreendido de Belém?
Não. Saí bastante satisfeito e bastante realizado com a forma como realizei as funções de PR. A todo o tempo eu ia fazendo a comparação entre aquilo que fazia e acontecia e o que tinha acontecido se a escolha do povo português fosse outra. Não ficava nada frustrado com aquilo que ia fazendo em comparação com o que - é minha opinião - teria acontecido se a escolha dos portugueses fosse outra. Tenho uma imensa gratidão para com o povo português.

Sente que o povo português tem essa mesma gratidão por si?
Já tive ocasião de afirmar que os julgamentos vão ser feitos no dia-a-dia. A trepidação política, a espuma dos dias, o ruído mediático nunca influenciou as minhas decisões. Não me esqueço do que dizia Francisco Sá Carneiro - fui ministro das Finanças e do Plano dele: nunca confundam a opinião pública com a opinião publicada. Os problemas devem ser estudados com profundidade e depois tentar fazer aquilo que consideramos ser o melhor para o superior interesse nacional. Portanto, chego ao fim perfeitamente realizado. Sou um homem de sorte e na política tive também muita sorte, como na vida profissional e na familiar. Não acumulo frustrações.

O último mandato não foi mais difícil?
Não vale a pena estar aqui a recuperar o que foi a campanha montada contra mim para não ser reeleito.

Há pouco disse-nos que não abre a TV durante Agosto. Da leitura do seu livro e da observação do seu exercício de poder ao longo de 30 anos, percebe-se que cultiva um distanciamento em relação à comunicação social. Isso como PR ajudou-o em que aspecto?
Esse distanciamento, em minha opinião, é fundamental para a dignidade do exercício da função.

Foi nesse sentido que o ajudou?
Sim. Respeitar os profissionais da comunicação social que analisam e acompanham o PR, mas manter a total independência do PR em relação à comunicação social é uma exigência da dignidade no exercício da função. Por isso, durante dez anos, nunca telefonei a um jornalista. Eu sei que há muitos políticos que telefonam com frequência. É a minha interpretação do exercício do mandato: independência de todos os poderes, sejam corporações económicas, seja do meio jornalístico, seja de partidos. Acho que desempenhei a função com muita isenção. 

Nos 10 anos de Presidência, qual foi para si o seu maior erro?
Não era fácil para mim apontar um grande erro. Sou uma pessoa que no exercício da função estudou muito - estudo todos os dossiês, porque para me apresentar perante um primeiro-ministro ou perante as oposições tenho de estar muito bem informado e ter estudado muito os assuntos com que quero confrontar o Governo. Confesso um erro que cometi quando indiquei o eng. Sócrates para a formação do XVIII Governo Constitucional e que depois não cometi quando indiquei o dr. António Costa: devia ter sido eu a dizer que o encarregava de fazer diligências políticas para me apresentar um Governo consistente e duradouro. Mas permiti que fosse ele. Isso talvez tenha influenciado a forma como ele próprio aproximou os contactos com os partidos da oposição, que não conduziram a nenhum tipo de entendimento nem para coligação nem tão pouco para acordo de incidência parlamentar.

Deu-lhe espaço demais?
Isso teve influência depois na forma como se desenvolveram os contactos entre o Governo e a oposição. O primeiro-ministro tinha sempre em muito má conta a oposição. Considerava mesmo que tratando agressivamente a oposição era a forma de a por na ordem.

Esse erro que disse não ter cometido na nomeação de António Costa: acha que o modo como colocou a questão da estabilidade levou a uma solução mais estável?
Sabe, o Governo de António Costa faz parte de outra história, que eu, neste momento, não quero abordar. Entendo que não devo abordar, nem na sua formação, que foi complexa e de que existem muitos documentos escritos que eu próprio os divulguei, quer agora na sua execução. Por isso, peço desculpa por não abordar o tema.

Qual foi a sua maior vitória como PR?
Um PR não tem poder executivo, não tem poder legislativo, não tem ministérios, não define políticas económicas, sociais, ambientais, científicas e as suas vitórias ou resultados são de natureza muito diferente daquelas que alcança um Governo. As minhas influências como PR - o que é normal num PR - faz-se pela via do escrutínio da legislação, onde o PR pode convencer o Governo a alterar a legislação ou pode vetá-la ou mandá-la para o Tribunal Constitucional. Penso que um dos meus maiores contributos para a defesa do superior interesse nacional foi na alteração do Estatuto Político-Administrativo dos Açores: 25 normas foram declaradas inconstitucionais. Foi uma luta que travei com a Assembleia da República durante um ano. E se eu olhasse o Portugal num tempo curto, não travaria aquela luta. Mas era um caso em que era preciso olhar o Portugal no tempo longo. Os deputados, revelando uma cobardia política que nunca mais encontrei nem conhecia, votaram três vezes o Estatuto Político-Administrativo dos Açores, sabendo que eu tinha razão (que era acompanhado nas minhas posições por muitos constitucionalistas), [e fizeram-nos] de uma forma cobarde porque iam ocorrer eleições.

Eleições nos Açores.
Havia pressões muito grandes, receavam que fossem vistos como anti-autonómicos. E eu não desisti. E era uma luta que o povo português não compreendia porque eu a travava. E é ai que se vê a fibra de um PR. Sabendo que o povo não acompanha, não percebe o que está a acontecer, ele está a fazer aquilo que eu considero um dos maiores contributos para a defesa do superior interesse nacional.

Em dez anos, falou dezenas de vezes da necessidade de compromissos, fê-lo em particular em 2013, com um empenhamento evidente. Por que é que estes compromissos nunca aconteceram durante a vigência do seu mandato? 
Não só na vigência dos meus mandatos. O que digo é que em Portugal tem havido uma resistência bastante grande à realização de compromissos políticos. Aliás, foi no meu mandato que pela primeira vez um governo de coligação cumpriu integralmente o seu mandato, o que exigiu da minha parte uma atenção muito cuidada e uma intervenção em momentos críticos.

Em 2013.
Nesse Governo ocorreram algumas crises. Devo referir que o dr. Passos Coelho muito trabalhou para ultrapassar essas crises. Essa crise que refere foi a da demissão do ministro das Finanças, Vítor Gaspar, em que depois tentei  promover um compromisso de salvação nacional, que se desenvolveu na parte negocial de uma forma positiva. E foram circunstâncias para além dos intervenientes na negociação que impediram que o compromisso se realizasse. Mas quero referir que isso já se refere ao meu segundo mandato, num tempo que, neste momento, ainda não quero contar. Tinha um representante nessas negociações.

O professor David Justino.
Eu tenho os dossiês completos de tudo o que foi dito. Quando isso tiver que ser contado, tem que ser contado na íntegra.

O segundo volume, sobre o Governo de Passos Coelho, virá quando?
Não sei. Ainda não decidi.

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