O fado pode ser tão trágico, tão trágico, que até tem piada

A segunda conversa de Tragédia + Tempo, o ciclo de e sobre humor do Teatro São Luiz, contou com Camané, Ricardo Ribeiro, Celeste Rodrigues e Mário Laginha.

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Mário Laginha, Camané, Ricardo Ribeiro e Celeste Rodrigues discutiram a forma como o humor surge nas letras do fado Miguel Manso
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Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira são os anfitriões do ciclo Tragédia + Tempo Miguel Manso
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Ricardo Araújo Pereira comparou o humor ao fado: "É que tirando ou pondo uma palavra ou outra já não tem o efeito pretendido”. Miguel Manso
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Mário Laginha reconheceu o desafio de encontrar humor na música não verbal Miguel Manso

Como canção que celebra a saudade e a memória, o fado é tradicionalmente associado ao xaile preto, ao semblante carregado e à voz repleta de emoção. À partida, não se consideraria que pudesse haver humor neste género musical – e essa reflexão foi precisamente o desafio proposto por Ricardo Araújo Pereira e Bruno Nogueira para a segunda conversa do ciclo Tragédia + Tempo, que decorreu esta terça-feira no Teatro São Luiz, em Lisboa. A sessão contou com a presença dos fadistas Camané, Ricardo Ribeiro e Celeste Rodrigues e do pianista Mário Laginha, que discutiram a dimensão da presença do humor na música. “Normalmente temos a ideia de que o fado que não pode ser humorístico, mas há fados que são realmente tão trágicos que passam a ser engraçados”, começou por dizer Ricardo Araújo Pereira.

O fado popularizou-se ao cantar a tragédia e a mágoa, mas é possível encontrar humor e sátira em algumas das suas letras. Ricardo Ribeiro, que afirmou “estar sempre a rir antes de entrar em palco”, começou por mencionar o carácter caricatural dos versos de O Carcereiro: “Junto de uma cadeia, há um carcereiro/ Seu lar construiu, amor traduz/ Fruto desse grande amor primeiro/ Uma linda criança veio à luz”. Na mesma senda cómica, o fadista coloca o Fado da freira, que relata a história de uma freira que não é apenas devota a Cristo. “Mas uma freira absorta/ Acercando-se da morta/ Nessa medalha pegou/ Pôs-se a gritar ‘Deus me valha’/ Não é de Cristo a medalha/ Mas do homem que ela amou”. Para Ricardo Ribeiro, o fado não deve estar só e apenas conotado com a infelicidade. “O fado é uma coisa que canta a vida, por isso não é alegre nem triste – é as duas coisas”, atirou.

Além de viver nos versos de algumas canções, o humor também faz parte dos bastidores do fado. Prova disso foi a história contada por Camané sobre uma actuação condenada pelo riso. “Estava a cantar numa casa de fados quando reparei que havia quatro japoneses a dormir de boca aberta”, recordou o fadista, lembrando que todo o público se começou a rir. “Parece-me que há um ponto de contacto entre o fado e o humor”, comentou Ricardo Araújo Pereira. “É que tirando ou pondo uma palavra ou outra já não tem o efeito pretendido”.

A oportunidade para o riso no fado não é tão rara quanto se possa pensar, o que se reflecte na tradição que existe em atribuir alcunhas aos fadistas, sobretudo aos homens. Ricardo Ribeiro revelou ser conhecido entre os seus pares como “banda larga”, “pisa-papéis” e “Godzilla”, e aproveitou para levantar o véu sobre alguns nomes dos seus colegas de profissão – João Braga é “Ácaro” e Nuno da Câmara Pereira é “Perfeito Calhau”. Já o histórico fadista Alfredo Marceneiro era, para os seus colegas, o “Alfredo Lulu”.

Por sua vez, Celeste Rodrigues frisou que o fado não funciona com sotaque, pois essa é uma receita infalível para a gargalhada. “Tinha uma prima que cantava nas Beiras, tinha uma voz linda mas que não funcionava no fado”, recordou à plateia, imitando a pronúncia acentuada do “ss” nos versos. Camané concorda que, além do sotaque, a língua portuguesa é a única cuja musicalidade e sonoridade se prestam ao fado. “[Cantá-lo noutra língua] seria como cantar flamenco em inglês”, disse o fadista.

De acordo com Ricardo Araújo Pereira, “o tema musical não-verbal também pode ser humorístico, como quando os instrumentos imitam sons de animais ou outros sonos como táxis”. Foi o mote para a entrada de Mário Laginha na conversa, que aproveitou para tocar parte da Primeira Sinfonia de Mahler e mostrar como um segmento tido como alegre pelo grande público faz parte de uma marcha fúnebre. “Há sempre espaço para o humor, mas [o instrumental] dificulta porque não existe palavra”, opinou o pianista. “Agora, posso estar a tocar uma música e de repente tocar a música de parabéns, isso pode ou não provocar o riso”.

Foi O Parentesco, fado humorístico de Neca Rafael, que deixou o auditório do São Luiz a ecoar de gargalhadas. “Casei com uma viúva minha amada/ Que tinha uma grande filha e muito bela/ Ficou portanto, sendo minha enteada/ Mas o meu pai depois casou com ela”, cantou Camané sobre a teia familiar. E os aplausos que seguiram não se contiveram em respeito à mágoa cantada – foram sonoros, como o riso provocado pelos seus versos.

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