A CGD e a subversão dos inquéritos parlamentares

É difícil sustentar que as comunicações entre Centeno e António Domingues respeitam à esfera íntima da sua vida privada.

Uma injustiça feita a uma só pessoa
é uma ameaça a todos

Montesquieu

A figura jurídica dos inquéritos parlamentares encontra-se consagrada no ordenamento jurídico-constitucional português, desde a Constituição de 1976. Já no n.º 1 do Artigo 181.º da lei fundamental se estatuía que a Assembleia da República (AR) pode constituir comissões eventuais de inquérito, disposição que a atual versão da lei fundamental mantém inalterada.

E a alínea a) do Artigo 165.º da CRP [Constituição da República Portuguesa], prevê que compete à AR, no exercício de funções de fiscalização, vigiar pelo cumprimento da Constituição e das leis e apreciar os atos do Governo e da Administração. Uma das mais importantes manifestações da referida competência é concretizada na figura dos inquéritos parlamentares.

Por sua vez, o atual regime dos inquéritos parlamentares determina, no n.º 4 do seu Artigo 13.º, que nas comissões parlamentares de inquérito requeridas ao abrigo da alínea b) do n.º 1 do Artigo 2.º [inquéritos efectuados a requerimento de um quinto dos deputados em efectividade de funções] as diligências instrutórias referidas no número anterior [informações e documentos úteis à realização do inquérito a solicitar, designadamente ao governo, aos órgãos da administração ou a entidades privadas] que sejam consideradas indispensáveis à boa realização do inquérito pelos deputados que as proponham são de realização obrigatória, não estando a sua efetivação sujeita a deliberação da comissão.

A este respeito, a jurisprudência do Tribunal Constitucional (TC) considera que as comissões parlamentares de inquérito podem ter como objecto quaisquer factos ou questões de interesse público [e que] não podem aquelas ter por objecto questões que tenham que ver com interesses estritamente privados, nos termos do Acórdão n.º195/94 — Processo nº 478/93 do Tribunal Constitucional.

Foram constituídas dezenas de comissões eventuais de inquérito, muitas representando um exemplo do bom funcionamento das instituições democráticas e do escrutínio parlamentar da acção governativa. Nem sempre essas comissões deram os frutos esperados e verificaram-se também ocasiões em que as minorias parlamentares não se reviram nos relatórios finais. Tal foi o caso da comissão parlamentar de inquérito (CPI) à celebração de contratos de gestão de risco financeiro (os chamados “contratos de swaps”), em que o PS discordou das suas conclusões, sentenciando: “A partir de hoje [as comissões de inquérito] concluirão o que a maioria conjuntural quiser.” Ironicamente, foram necessários apenas três anos até o PS dar razão à crítica que então fazia. A CPI à recapitalização da Caixa Geral de Depósitos (CGD) e à gestão do banco público constitui o mais acabado exemplo da dificuldade que este PS tem em aceitar o escrutínio político democrático.

Desde logo, pela oposição que fez à própria constituição da comissão, que teve de ser imposta potestativamente pelo PSD e CDS-PP. Depois, pelas permanentes dificuldades que levantou ao processo de audições e ao autêntico boicote que impôs aos trabalhos da comissão, como o demonstram as suas resistências às audições de Mário Centeno e António Domingues ou ainda de Armando Vara. Tal não surpreende, até porque o PS nunca quis que se conhecesse a verdade sobre as responsabilidades das anteriores gestões da CGD. Quase diria que o PS parecia já adivinhar as revelações que Campos e Cunha viria a fazer em Janeiro último.

Já o PCP, que tem a jactância de acusar partidos de matriz democrática e pluralista de estarem na marginalidade, é o mesmo que, há apenas dois anos, no âmbito do inquérito parlamentar à gestão do BES e do GES, requeria o acesso aos contactos telefónicos entre o então primeiro-ministro e o presidente do BESI, com o argumento de que é preciso saber, dizia o deputado Miguel Tiago, se “houve ou não apelos” deste último àquele e “quais foram as reações do Governo”. Na altura, todos os partidos viabilizaram o requerimento do PCP.

Quanto ao BE, inebriado pelo perfume do poder, regrediu de uma postura política quase savonaroliana (ainda recordo a deputada Mariana Mortágua a utilizar, sem rebuço, na comissão de inquérito ao BES, as gravações das reuniões privadas (?) do conselho superior do Grupo Espírito Santo) para a mera conveniência partidária e o puro calculismo político.

Afinal, para os filhos de Estaline e de Trotsky os fins sempre justificaram os meios.

Se compreendemos o embaraço político do PS — não é fácil reconhecer que se mentiu e enganou —, é bem revelador observar a falta de coerência dos partidos da extrema-esquerda, ontem tão moralistas e defensores da transparência e hoje cúmplices silenciosos das manhas com que o Governo tão ligeiramente tem desprestigiado e fragilizado o “banco público”. É que ninguém com um mínimo de boa-fé será capaz de pôr em causa que o inquérito à CGD devia apreciar a atuação recente do Governo em relação a esse banco, aí se incluindo, naturalmente, a relação do executivo com António Domingues.

Com efeito, o objecto da comissão compreende, designadamente, apreciar a atuação dos órgãos societários da Caixa Geral de Depósitos (...), dos Governos (...), no que respeita à defesa do interesse dos contribuintes, da estabilidade do sistema financeiro e dos interesses dos depositantes, demais credores e trabalhadores da instituição e à gestão sã e prudente das instituições financeiras e outros interesses relevantes que tenham dever de salvaguardar.

Percebo que o Governo não queira que os portugueses conheçam a verdadeira razão que provocou a saída de António Domingues da CGD, mas também sei que quem não deve não teme.

É sabido que o referido gestor colocou condições ao Governo para aceitar a presidência da CGD, entre as quais a de não ser sujeito ao dever de apresentação da declaração de rendimentos e património ao TC, o que o executivo aceitou, tendo sido delegado numa sociedade de advogados a tarefa de alterar materialmente a lei, serviu-se ainda dele no processo de recapitalização do banco público, para mais quando o mesmo se encontrava ainda a exercer funções numa entidade concorrente. Por isso não surpreende a ferocidade com que os comparsas da geringonça defendem o segredo de contactos oficiais entre aquele governante e um gestor a propósito da forma como subverteriam a imposição legal de transparência dos administradores do banco público.

Só muito dificilmente poderá alguém sustentar que as comunicações entre o ministro Mário Centeno e António Domingues, procurando que este ficasse desobrigado de apresentar as declarações de rendimentos e património que impendem sobre os gestores públicos, respeitam à esfera íntima da sua vida privada. Pretender, como o fazem agora os partidos de esquerda e extrema-esquerda, que os sms trocados entre Mário Centeno e António Domingues constituem comunicações estritamente privadas, e que, por tal facto, o seu conhecimento pela comissão poria em causa os direitos protegidos pelo Artigo 34.º da Constituição, não só entra em contradição com o já aludido comportamento passado do PCP e do BE, como ofende a inteligência dos portugueses.

A verdade é que o assunto era político e certamente as comunicações tecnológicas foram custeadas pelo Estado, pelo menos na parte que respeita ao ministro das Finanças.

Sugerir correcção
Comentar