Povo que danças junto ao rio

Hercules & Love Affair encantaram com house clássica, Jessy Lanza teve um discreto triunfo. A segunda edição do Lisboa Dance Festival levou 11 mil pessoas à LX Factory.

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Jessy Lanza estreou-se nos palcos portugueses ENRIC VIVES-RUBIO
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O povo apreciou as linguagens de Tokimonsta ENRIC VIVES-RUBIO
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DJ Glue foi aos arquivos do hip-hop português, ENRIC VIVES-RUBIO
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Pedro Coquenão (Batida) escondeu-se dos olhares enquanto um performer cúmplice abria clareiras de dança na audiência ENRIC VIVES-RUBIO
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À segunda canção, I try to talk to you, já o público dança sem pudores. A música pede-o: os Hercules & Love Affair mergulham na história do disco e da house para fazer canções sobre o amor e as dores de viver – matérias que sempre se celebraram e curaram na pista de dança, seja numa discoteca em Nova Iorque ou numa velha, gigante e desactivada fábrica junto ao Rio Tejo. Não há John Grant no palco maior do Lisboa Dance Festival, mas há duas vozes possantes que dão conta do recado: Rouge Mary, de camisa branca, gravata preta, calções curtíssimos e voz grave, e Gustaph, ginasta dos falsetes.

No sábado, segundo e último dia do festival, que juntou 11 mil pessoas (mais duas mil do que em 2016), os Hercules & Love Affair do norte-americano Andy Butler ofereceram a euforia que o povo pedia antes de se lançar noite dentro com os sets de Hunee e George FitzGerald, nomes maiores do tecno e da house. Os Hercules & Love Affair trouxeram argumentos de sobra, como My house, festa de arpejos de sintetizadores, You belong, house clássica, a fúria industrial do novo single Controller e, sobretudo, Blind, disco com os olhos postos no cosmos infinito, clássico instantâneo, quase tão potente no sábado, na voz dos excelentes Rouge Mary e Gustaph, como quando o mundo a ouviu pela primeira vez, em 2008, cantada por Anohni.

Antes dos Hercules & Love Affair, os ingleses Mount Kimbie foram a territórios menos expansivos da música electrónica. As suas canções de percussão libertina, teclados pensativos e samples retalhados não tiveram o impacto desejado, mesmo que Maybes, do EP de estreia (2008), tenha conseguido fazer vibrar as vigas metálicas da fábrica – ou assim nos pareceu. Mostraram novas canções, algumas com aparente inspiração krautrock.

Horas antes de começarem os concertos, pelas 17h40, no piso superior da antiga fábrica, com vista para a Ponte 25 de Abril, os rappers Mike El Nite e Harold, que na noite anterior actuara na Livraria Ler Devagar, discutiam o fenómeno hip-hop. No piso inferior, faziam-se testes de som e experimentavam-se sintetizadores e caixas de ritmos. Minutos depois, Sensei D. explicaria como fazer uma canção a partir de um sample do genérico da série televisiva Sandokan e o produtor Maria (David Almeida) daria uma lição de como levar a música electrónica para um palco.

Uma nave tecno

Lá fora, bebem-se cafés, folheiam-se livros e revistas, experimenta-se roupa, fazem-se tatuagens, aproveita-se o sol pré-primaveril. Na sexta-feira e no sábado, a vida normal da LX Factory cruzou-se com uma outra oferecida pelo Lisboa Dance Festival: concertos, actuações de DJ, debates e masterclasses, tudo em torno da música electrónica, ocuparam parte dos espaços deste antigo complexo industrial.

Ao anoitecer de sábado recarregavam-se baterias depois de uma noite longa finalizada a bordo da nave tecno de Marcel Dettmann. O alemão, DJ residente no mítico clube berlinense Berghain, impôs a rave com música muscular e atmosférica. O seu conhecimento acumulado da história do tecno revelou-se num set em que variações e transições subtis aconteceram sobre um ritmo pulsante. O povo apreciou-o, como já tinha apreciado Dekmantel Soundsystem e a fina selecção de hip-hop, R&B e outras linguagens de Tokimonsta, que pôs Drake, Kendrick Lamar e drum and bass numa centrifugadora rítmica – prova do talento demonstrado em vários álbuns e louvado por gente como Flying Lotus.

Também na sexta-feira destacou-se Jessy Lanza, que se estreou em palcos portugueses. A canadiana faz música com uma sabedoria rara: tem sintetizadores lustrosos, mas na conta certa; aproxima-se do R&B, mas a sua sensualidade é austera; acerca-se de linguagens de pista (como o footwork), mas retira-lhes qualquer violência, ficando-se pelo lado lúdico dos ritmos. Desta soma de subtracções nasce uma música sem geografia fixa.

Vivica apresentou-se com as suas batidas a múltiplas velocidades, baixo sinuoso e teclados de cetim, mas foram os momentos mais dançáveis que agitaram a audiência em construção – a antiga fábrica estava ainda longe da enchente que Marcel Dettmann teria horas depois. Foi disso prova cabal a sequência que começou em Never enough (com batida anos 1980 e Lanza com voz de menina reguila), foi a VV Violence (apurada ciência de graves) e terminou na sublime It means I love you (uma canção em permanente tentação de se render à pista de dança). O aclamado Oh No (2016) foi o prato forte, mas não exclusivo: Keep moving, do primeiro disco, Pull My Hair Back (2013), trouxe funk sintético ao Lisboa Dance Festival.

Como em 2016, o festival voltou a ser uma amostra da boa saúde da música portuguesa. No arranque das festividades, Holly Hood esfregou trap com batidas de ouro na cara de poucas dezenas de pessoas. Moullinex, na sexta, e Branko, no sábado, tiveram a seu cargo a programação de DJ do espaço Zoot, metendo-se eles próprios ao barulho. Na Ler Devagar, DJ Glue foi aos arquivos do hip-hop português, Pedro Coquenão (Batida) escondeu-se dos olhares enquanto um performer cúmplice abria clareiras de dança na audiência e o Conjunto Corona fez da chungaria território de libertação.

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