Guia de leitura para as eleições em holandês

Uma atitude normal no centro da campanha? Ou agradar ao Henk e Ingrid e não ao Ali e à Fatima? Mas o que acontece então ao modelo do compromisso? A campanha para as eleições vista em termos tipicamente holandeses

Foto
O primeiro-ministro Mark Rutte em campanha Dylan Martinez/REUTERS

Nos cartazes, nos discursos dos políticos, nas conversas com eleitores, há termos que sobressaem na campanha para as eleições legislativas de quarta-feira na Holanda. Há ideias difíceis de traduzir, que mostram idiossincrasias holandesas. Aqui ficam algumas, sem a pretensão de ser exaustivo.

Normaal – os holandeses que não se querem destacar

Normal é uma palavra que se ouve muito na Holanda. Expressões como “ser normal é ser já um bocadinho maluco”, ou não ser desejável que “se sobressaia no meio de um campo de relva” são coisas que os holandeses dizem muitas vezes. Em cidades que em tempos já foram muito ricas, essa riqueza não foi usada para a ostentação. Até a monarquia tem um palácio relativamente sóbrio.

Este sentimento marcou a campanha do Partido da Liberdade e Democracia (VVD, centro-direita), do primeiro-ministro Mark Rutte.

Primeiro foi a carta que enviou a todos os holandeses. “Ajam normalmente, ou então vão embora”, dizia. Esta declaração foi vista como dirigindo-se a quem tem para onde ir, um país de origem, e uma tentativa de conquistar votos à extrema-direita.

Depois, os anúncios do partido. Os cartazes do PVV são dos mais presentes no espaço público – paragens de autocarro, estações de comboios. Oferecem três escolhas, duas radicais e uma “normal”: “Pôr a cabeça na areia? Um pano na cabeça [termo pejorativo para o hijab usado por Geert Wilders]? Usar a cabeça’?” A escolha é clara: “a normal”.

Henk e Ingrid – o público de Wilders

O populista xenófobo Geert Wilders fez de Henk e Ingrid os seus heróis. São uma espécie de equivalente ao Zé Povinho português. Wilders apresenta-os como trabalhadores, mas a enfrentar dificuldades com os cortes impostos pelo Governo de Rutte. E a ver os seus vizinhos, marroquinos ou turcos, a viver de subsídios sem trabalhar: é por isso que Wilders diz que quer medidas para Henk e Ingrid “e não para Ali e Fatima”.

Os críticos deste modo de pensar têm outra palavra para eles, são os boze burgers, ou seja, os cidadãos zangados. Porque estão os cidadãos zangados num país rico e com uma boa protecção social? Porque a sua vida não está a melhorar, ou pelo menos não como gostariam que estivesse. A economia teve melhores resultados no ano passado, mas após oito anos de regressão ou estagnação.

Estes cidadãos têm medo. O que nos leva ao próximo termo.

Onderbuikgevoel – o estranho provoca um presságio

Foto
Geert Wilders capitaliza com o medo dos "cidadãos zangados" Yves Herman/REUTERS

Há muitos holandeses que acarinham a sua sociedade multicultural. Mas outros sentem uma mistura de estranheza e medo. Há um sentimento do que dizem ser Onderbuikgevoel, uma sensação bem no fundo da barriga, que é uma espécie de mau presságio.

Pode ser provocado em pessoas que vivem em bairros que de repente tem uma esmagadora maioria de habitantes a falar uma língua que não entendem e em que vêem mulheres em posições subalternas. Há um medo de perder tradições culturais queridas face ao que poderia ser uma ameaça de culturas exteriores: o debate sobre o Zwarte Piet, o ajudante do São Nicolau que tem a cara preta, e se é ou não aceitável ter um negro no papel de subalterno, ainda por mais protagonizado por um branco com a cara pintada, é um exemplo disso.

Este sentimento também pode ser provocado pela chegada de refugiados em massa, apesar de depois do verão de 2015 o número de refugiados ter diminuído, e até haver relatos de abrigos que têm vagas a mais.

Mas tudo isto contribuiu para que muitos tenham esta sensação desagradável na barriga, nem que seja por introduzir um elemento novo numa sociedade organizada de um modo especial.

Poldermodel, o consenso como objectivo

Foto
Jesse Klaver, líder da Esquerda Verde, um partido que está a subir nas sondagens PIROSCHKA VAN DE WOUW/EPA

Apesar de nunca ter havido tantos partidos a concorrer às eleições (28, dos quais metade com boas hipóteses de entrar no Parlamento, já que não há barreiras mínimas para eleger deputados), o sistema holandês sempre foi definido por coligações (nunca um partido governou sozinho depois da II Guerra Mundial) e por uma cultura especial de compromisso.

Em média, as conversações para a formação de um governo demoram uns três meses. Os partidos discutem os programas e chegam a compromissos. Ninguém antecipa quanto poderão demorar as conversações se o próximo governo tiver, como se antecipa, mais de quatro partidos – sem que nenhum seja o de Geert Wilders, com o qual todos prometeram não colaborar, mesmo que ganhe as eleições.

No entanto, este modelo baseado no consenso tem alicerces em instituições fora do sistema partidário. Um organismo essencial é o SER, Conselho Económico e Social, que tem representantes de organizações patronais, sindicatos, governo e peritos independentes e que avalia consequências económicas dos planos políticos e faz previsões económicas, aconselhando políticas.

Voltando mais atrás, o consenso era necessário para uma sociedade fortemente dividida em colunas ou pilares (verzuiling), em que cada comunidade vivia separada: os católicos votavam no partido católico, apoiavam o clube de futebol católico, liam o jornal católico, iam ao padeiro católico. Os protestantes, os socialistas, e os liberais faziam o mesmo. Resquícios desta organização ainda existem, como na divisão da televisão pública em três canais.

Stemdag/Stemlokaal – votar à 4ª feira no supermercado

O dia de voto (stemdag) e o local (stemlokaal) onde se vota na Holanda são diferentes da maioria dos países europeus. A eleição nunca é ao domingo, por causa dos protestantes ortodoxos, e o Parlamento (Tweede Kamer) explica que outra razão para isso é que a abstenção se torna menor sendo o voto durante a semana. Além disso, quarta-feira é o dia com menos aulas nas escolas, que são o local de voto clássico.

Mas isso não quer dizer que não haja muitos outros locais de voto possíveis. Sinais com três lápis vermelhos indicam sítios onde na quarta-feira é possível ir depositar o seu voto: bibliotecas, teatros, e até cafés ou supermercados. Algumas cidades têm ainda carrinhas que são estações de voto móveis.

As últimas duas eleições na Holanda tiveram uma participação de 75% e espera-se que este ano a percentagem suba.

Foto
Nunca houve tantos partidos a concorrer a umas eleições Dylan Martinez/REUTERS
Sugerir correcção
Ler 3 comentários