Em Espanha diz-se que as mulheres portuguesas não se divorciam como as outras – e com razão

As mulheres portuguesas que se queiram voltar a casar após divórcio têm de esperar dez meses – mais quatro do que os homens. No país com mais divórcios na Europa, o Bloco de Esquerda quer eliminar este “resquício conservador” do Código Civil.

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O caso português já encontra poucos paralelos no mundo desenvolvido Pedro Cunha

Até em Espanha já se fala da discriminação que existe entre homens e mulheres portuguesas que se queiram voltar a casar depois do divórcio. Tal como a imprensa portuguesa, o El País também noticiou neste sábado que o Bloco de Esquerda pretende alterar a lei de 1967, mantida em 1977 – já em democracia – que define que as mulheres só se podem voltar a casar dez meses depois do divórcio, mais 120 dias do que o período imposto aos homens.

Esta diferença está sobretudo relacionada com a “presunção da paternidade”, explica ao PÚBLICO Sandra Cunha, deputada do Bloco de Esquerda – assim, os dez meses são tempo suficiente para perceber, na eventualidade de a mulher estar grávida, se a criança é do primeiro ou do segundo marido. “É absolutamente inaceitável na sociedade de hoje”, considera a deputada responsável pela pasta da Igualdade e Não Discriminação, que lembra que, em caso de dúvida, os testes de paternidade resolveriam a incerteza.

Na quarta-feira, Dia Internacional da Mulher, o Bloco de Esquerda entregou no Parlamento um projecto-lei que defende a alteração ao Código Civil para eliminar a discriminação que existe no prazo internupcial entre homens e mulheres. A discussão do projecto ainda tem de ser agendada e só deverá ser discutida em Abril, refere Sandra Cunha.

O artigo que se pretende alterar é o 1605.º do Código Civil, estabelecido em 1967, relativo ao prazo internupcial; no artigo lê-se que não pode haver casamento depois da dissolução do matrimónio até decorrerem 180 ou 300 dias, “conforme se trate de varão ou mulher”. Na exposição de motivos do projecto-lei, o Bloco de Esquerda considera que o Código Civil foi “influenciado pelo contexto político-social da década de 60 em Portugal”.

“São resquícios conservadores que ainda se encontram no Código Civil”, observa Sandra Cunha. “O facto de haver esta diferença entre homens e mulheres decorre, precisamente, de uma sociedade conservadora e machista que entende a mulher como um ser menor”, acrescenta a deputada, considerando peremptória a alteração do artigo em questão.

À luz do Código Civil, é permitido que a mulher possa voltar a casar passados 180 dias desde que obtenha uma “declaração judicial de que não está grávida" e que comprove que não tenha tido algum filho depois do divórcio. “Portanto, tem de ir ao tribunal com um relatório que prova que não está grávida e pedir autorização para se casar – isto é absolutamente inaceitável”, afirma ao PÚBLICO Sandra Cunha.

O caso português já encontra poucos paralelos no mundo desenvolvido. Em grande parte dos estados norte-americanos, por exemplo, não existe qualquer prazo de espera entre um divórcio e um novo matrimónio. No Reino Unido, tal como na Austrália, os cidadãos podem voltar a casar assim que estiver concluido o processo de divórcio. Em nenhum destes países o período de espera difere de homem para mulher.

A razão para que este período exista em Portugal, tanto para homens como para mulheres, foi sendo justificada com uma questão de “decoro social”. No entanto, o objectivo seria eminentemente prático, “para dar tempo” para precaver um conjunto de complicações que podem surgir com um segundo casamento, como a partilha de responsabilidades parentais ou a partilha de bens, admite Sandra Cunha, que no entanto se opõe à discriminação por género que está explícita na lei.

“Até que a morte nos separe”… ou nem tanto

Portugal é o país com maior prevalência de divórcios em toda a Europa. Por cada 100 casamentos que existem, há 70,4 divórcios, segundo dados da PORDATA relativos a 2013. Este número tem vindo a aumentar desde 1960, ano em que apenas 1,1% dos casamentos terminavam em divórcio. A partir de 2000, o número começou a ultrapassar os 30%. O valor mais elevado foi assinalado em 2011: 74,2%.

Para explicar a elevada taxa de divórcios, Sandra Cunha, que também é socióloga, aponta para a saída ainda relativamente recente de Portugal de uma ditadura em que existia um "paradigma dominante em que as mulheres eram dependentes e muita gente casou para tentar fugir à dominação que se vivia em casa da família para, muitas vezes, caírem noutro tipo de dependência em relação ao marido”. Por outro lado, houve “uma alteração muito significativa no Código Civil”, que facilitou o acesso à separação ao deixar de existir “divórcio litigioso”, que obrigava a que houvesse “uma culpa para o divórcio”.

No resto da Europa, o segundo país com maior taxa de divórcios é a Dinamarca (68,6%), seguida do Luxemburgo (67,5%). O país onde há menor percentagem de divórcios é Malta (13,1%).

Segundo dados relativos a 2013, de um total de 22.525 divórcios registados em Portugal, a maioria corresponde a casamentos católicos (mais de 13 mil), enquanto a anulação dos casamentos civis correspondeu a cerca de nove mil. Em 2013, houve 31.693 casamentos; destes, quase 20 mil foram feitos por civil e 11 mil e quinhentos por via católica. Convém referir que os casamentos católicos não se incluem aqui nos casamentos por civil – ainda que, legalmente, todos os matrimónios celebrados pela Igreja tenham também efeitos civis.

Ao longo dos últimos anos, tem havido uma diminuição do número de casamentos e um aumento da percentagem de divórcios. Em 1960, houve quase 70 mil casamentos e 1975 foi o ano em que se registaram mais bodas: foram mais de 103 mil; bem mais baixo é o número registado em 2015, 32 mil. Em Portugal, os homens casam-se, em média, aos 32,5 anos e as mulheres aos 31 anos. Em 1960, os homens casavam-se aos 26,9 anos, em média, e as mulheres aos 24,8.

“Como houve muitos casamentos construídos na desigualdade entre homem e mulher, os divórcios cada vez acontecerão menos”, acredita a deputada do Bloco de Esquerda. “Antigamente dizia-se que o casamento era para a vida e que se tinha de aguentar. Agora, a sociedade já não olha de lado. Começa a ser ao contrário: se a pessoa está numa relação abusiva, começa a ser condenada por se manter nela”, diz Sandra Cunha. “Esta mudança de mentalidade na sociedade acaba por ser um factor-chave que também faz com que haja mais divórcios”, conclui a deputada bloquista.

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