Na Europa, a "geringonça" só funciona metade das vezes

É nas questões de género e de liberdades cívicas que a proximidade entre os eurodeputados do PS, do PCP e do BE é maior. No momento de votar as questões de género, a convergência PS/BE é de 94% e PS/PCP de 79%.

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Como funciona a geringonça em Bruxelas Nuno Ferreira Santos

Se o comportamento dos partidos que compõem a "geringonça" nem sempre é fácil de prever na Assembleia da República, no Parlamento Europeu (PE) é ainda mais difícil. Os acordos bilaterais assinados em Novembro de 2015 não se estendem a Bruxelas e isso nota-se. Contas feitas, o sentido das votações dos três deputados do PCP só coincide com o dos oito socialistas em cerca de 46% dos casos, segundo números disponibilizados ao PÚBLICO pelo VoteWatch, um think tank baseado em Bruxelas que monitoriza a actividade do PE. Marisa Matias parece mais próxima dos socialistas do que os deputados do PCP, mas ainda assim apenas vota ao lado dos representantes do PS em cerca de 56% das vezes.

A “Europa” continua a ser o nó górdio, a principal causa de divergências entre os partidos de esquerda em Portugal, em vários Estados-membros e também no Parlamento Europeu. Apesar de várias vozes à esquerda defenderem a convergência e a formação de um bloco progressista ao nível europeu, eurodeputados ouvidos pelo PÚBLICO consideram essa hipótese uma “impossibilidade” e uma “miragem”.

Em Lisboa, as esquerdas evitam que as questões europeias ensombrem a chamada “geringonça”. Mas, se na Assembleia da República os acordos entre PS-BE-PCP-Verdes estão delimitados a uma série de pontos e excluem as políticas europeias, no Parlamento da UE não há como lhes fugir.

Dezasseis meses após a assinatura dos acordos parlamentares, a “geringonça” funciona sem solavancos de maior em Lisboa. Mas em Bruxelas e Estrasburgo, PS de um lado e PCP e BE do outro revelam visões radicalmente distintas, muitas vezes incompatíveis, em relação às questões europeias estruturantes, demonstrando uma convergência impossível. Uma réplica do modelo português no PE ou noutros Estados, como alguns defendem, revela-se impraticável. A experiência governativa liderada por António Costa será assim uma especificidade nacional.

Os oito eurodeputados do PS integram a família política europeia dos socialistas, enquanto os três do PCP e a única representante do Bloco, Marisa Matias, pertencem ao Grupo da Esquerda Unitária (GUE) que junta deputados de partidos comunistas, ecologistas nórdicos e de esquerda radical.

A incompatibilidade entre as forças à esquerda em relação às políticas da UE é confirmada no dia-a-dia e está claramente registada nas votações em plenário. A política económica, monetária, comercial, relações externas, defesa e segurança, assuntos constitucionais atiram quase sempre as esquerdas para os dois lados opostos das barricadas.

Segundo o VoteWatch que analisou 5 áreas políticas, as esquerdas portuguesas aparecem muito divididas em políticas decisivas: assuntos constitucionais (Tratados, instituições), economia e comércio internacional. Pelo contrário, é nas questões de género e de liberdades cívicas (direitos humanos e direitos fundamentais) que a proximidade é maior. No momento de votar as questões de género, a convergência PS/BE é de 94% e PS/PCP de 79%.

A dívida divide

Não é preciso recuar muito para constatar as diferenças de fundo. Ainda durante a sessão plenária de Fevereiro, nas votações da posição do Parlamento sobre o futuro da Europa e do acordo de livre comércio UE-Canadá, ficaram mais uma vez expressas duas visões muito distintas. A maioria da bancada socialista europeia votou ao lado do PPE (onde estão os deputados do PSD e CDS), enquanto os deputados do PCP e do BE se pronunciavam contra em ambos casos.

Não só nas votações se confirmam divergências. Uma questão-chave para PCP e BE é a reestruturação da dívida. No ano passado, os eurodeputados comunistas apresentaram uma declaração escrita que pedia à UE para encetar um processo de renegociação das dívidas públicas dos países mais endividados. A iniciativa recolheu a adesão de deputados de vários grupos e países mas Ana Gomes foi a única deputada do PS a subscrever a declaração, além de Marisa Matias do BE. 

Para Francisco Assis, basta olhar para as votações em plenário para verificar as diferenças à esquerda. O eurodeputado do PS sublinha que “nas questões fundamentais a convergência entre socialistas e PPE é imprescindível, seja nas áreas de política económica, monetária, internacional ou comercial”.

As diferenças “são conhecidas e confirmam-se todos os dias”, explica João Ferreira do PCP. “Há uma proximidade maior do PS com a direita, com o PPE, com o PSD e o CDS, do que com a esquerda e com o PCP”. “Há divergências conhecidas em relação a opções fundamentais sobre o que deve ser a necessidade de recuperação de parcelas de soberania no plano monetário. O PS continua a defender a submissão do país a orientações e a políticas profundamente desastrosas e contrárias ao interesse nacional”.

Mais disponível para fazer pontes parece Marisa Matias. Reconhece que “uma 'geringonça' no Parlamento Europeu é uma miragem” mas ainda assim defende a necessidade de uma maior articulação entre as esquerdas. 

Chumbar a austeridade

No PE e nos Estados-membros não faltam defensores de alianças e convergências à esquerda, em Bruxelas e nos governos dos Estados-membros, para passar definitivamente a página dos anos de chumbo da austeridade. Eurodeputados de vários grupos políticos e nacionalidades reivindicam esse diálogo à esquerda para estabelecer uma agenda comum – nas questões sociais, clima, migração, luta contra a evasão fiscal, democracia e direitos, investimento.

Membros da família socialista, dos Verdes e do GUE até têm um fórum de debate – o Progressive Caucus -, uma espécie de antecâmara de uma plataforma progressista, com olhos postos nas eleições europeias de 2019.

No seio do grupo socialista europeu a abertura às esquerdas parece agora maior, após a recente ruptura da chamada “grande coligação” que manteve com o PPE nos últimos anos. “É necessário que as diferenças entre esquerda/direita sejam claras para os cidadãos”, diz o líder do grupo socialista, Gianni Pittella, ao PÚBLICO. “A alternativa à direita não é o populismo, mas a esquerda”. “Queremos construir uma plataforma política comum, um bloco progressista”. “Não é possível reproduzir o mesmo modelo em todo o lado” mas Pittella diz que Portugal “é um exemplo onde a convergência política permitiu ir além das diferentes sensibilidades”.

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