"Se não é possível impedir, há que garantir condições"

Moção da JS voltou a pôr prostituição na agenda. Rede Sobre Trabalho Sexual espera que haja agora “um debate sério e amplo que possa vir a resolver o vazio legal” e “que proteja e assegure os direitos” das pessoas que se prostituem.

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Estima-se que existam cerca de 100 mil trabalhadores do sexo em Portugal. O número consta da moção apresentada pela JS Nelson Garrido

Alexandra Lourenço foi “amante profissional” 12 anos, bate-se pelo enquadramento legal do trabalho sexual, mas não gostaria que o filho lhe seguisse os passos. “Ao saber como me comportei, só posso dizer: não é possível impedir. Se não é possível impedir, há que garantir condições.”

Não nasce de geração espontânea o debate sobre a regulamentação da prostituição que a Juventude Socialista quer iniciar no país. Há anos que a Rede Sobre Trabalho Sexual – da qual fazem parte 13 organizações com intervenção no terreno, vários académicos e alguns activistas  – se bate pelo enquadramento legal do trabalho sexual, entendido como transacção entre adultos, com consentimento mútuo. Espera agora que haja “um debate sério e amplo que possa vir a resolver o vazio legal” e “que proteja e assegure os direitos” das pessoas que se prostituem.

Portugal não se mete no sexo consentido entre adultos, mesmo que envolva dinheiro. Criminaliza, sim, quem fomenta, favorece, facilita o exercício de prostituição, mais ainda se usar violência, ameaça, ardil, manobra fraudulenta, abuso de autoridade ou se aproveitar de incapacidade psíquica.

“A população em geral não tem conhecimento que chegue para ter uma opinião formada sobre este assunto”, acredita Alexandra Lourenço. Parece-lhe que o debate, a existir, deve ser expurgado de juízos morais, moldado pelo direito ao livre exercício da profissão. “Eu fiz uma escolha. Trabalhava numa loja de materiais de construção. Era secretária. Ganhava 750 euros por mês. Tenho um filho. Pagava as contas, ficava sem dinheiro. Não vou dizer que é detestável. Detestável seria, se calhar, ter de trabalhar numa lixeira. Mas não recomendo… Nas condições actuais.”

O assunto é recorrente desde a viragem do século. Já em 2000, a Juventude Socialista, então liderada por Jamila Madeira, falava em regulamentar a prostituição. Há uns dias, aquela estrutura, agora liderada por Ivan Gonçalves, levou o Congresso Nacional do Partido Socialista a comprometer-se a abrir um debate nacional.

O tema começou a ganhar algum espaço em 17 de Dezembro de 2011, Dia Internacional da Luta contra a Violência sobre os Trabalhadores do Sexo. A Agência Piaget para o Desenvolvimento (APDES) convidou representantes dos vários partidos com assento parlamentar a discutir e foi desafiada por eles a apresentar propostas concretas. Precisamente um ano depois, um conjunto de recomendações foram remetidas para os grupos parlamentares.

“Era um ponto de partida para o diálogo, uma base de discussão”, recorda Isabel Soares, coordenadora do Porto G, uma equipa da APDES que faz intervenção em contextos vocacionados para a prostituição. “Queríamos que fosse um documento de conjunto e não uma proposta da APDES. Envolvemos pessoas que fazem trabalho sexual. Envolvemos a Rede, que subscreveu a proposta.”

Durante muito tempo, andaram de um lado para o outro. “Estivemos com os grupos parlamentares, a Comissão de Assuntos Constitucionais, Direitos, Liberdades e Garantias, a Subcomissão para a Igualdade e Não Discriminação, a Comissão de Trabalho e Segurança Social. Falámos com representes do Parlamento Europeu. Estivemos na CGTP-IN, na Procuradoria-Geral da República, na Direcção-Geral do Emprego e das Relações de Trabalho, na Autoridade para as Condições de Trabalho, no Observatório do Tráfico de Seres Humanos”, enuncia. Algumas entidades abstiveram-se de comentar, alegando que isso implicaria assumir uma posição sobre a actividade.

Defendem a descriminalização. O lenocínio deixaria de ser crime. No Código Penal ficaria apenas o que não corresponde a transição comercial, entre adultos, com consentimento, como é o caso da coacção, da violação, do tráfico de pessoas.

“O modelo mais eficaz do ponto de vista da protecção dos direitos humanos das pessoas que fazem trabalho sexual é o modelo de descriminalização, associado a uma regulamentação da actividade profissional”, lê-se num email enviada ao PÚBLICO pela Rede. É o modelo neozelandês. O trabalho sexual é reconhecido como qualquer outra actividade legítima e tributada. “Ao contrário de alguns receios, a descriminalização não resultou num aumento do número de trabalhadores do sexo, nem do número de pessoas traficadas para fins de exploração sexual, nem da prostituição de menores”, acrescenta.

Condições laborais é que pretende Alexandra Lourenço. Higiene e segurança no trabalho. Contrato, horário, subsídio de férias, subsídio de Natal, subsídio de parentalidade, baixa por doença, subsídio de desemprego. Pedro, um rapaz que se prostitui em apartamentos pelo país inteiro, menciona a possibilidade de declarar rendimentos, pagar imposto, aceder a um crédito à habitação. Para Maria, que gere um espaço, era também uma forma de contar com a protecção das autoridades.

No apartamento de Maria trabalham raparigas em regime de rotatividade. Ela paga a renda, a água, a luz, o gás e fornece toalhas e lençóis. E cada rapariga dá-lhe 10 euros por cada cliente. “Isto é ilegal. Consideram que favoreço a prostituição”, diz. Discorda. Para ela, aquele é um espaço de trabalho partilhado. “Se chamamos a polícia porque fomos agredidas, a polícia vem, tira o dinheiro que temos, leva-nos para a esquadra, somos humilhadas, acusadas de lenocínio.”

“Quem insulta, quem agride são pessoas que pensam que podem fazer o que quiserem porque as meninas não vão fazer queixa”, corrobora Alexandra. “Há um estigma associado. As pessoas dizem que a menina é que é culpada. Ela é que se meteu naquilo. A roupa que ela tinha vestida…" Acha que a legalização faria com que a sociedade as encarasse como seres humanos.

O assunto é controverso. Do outro lado da barricada estão organizações como O Ninho, que também intervêm na rua e noutros locais onde se pratica prostituição. Para Inês Fontinha, presidente daquela instituição, toda a prostituição é uma forma de violência. Parece-lhe que a prioridade deve ser outra: “O que podemos fazer para prevenir esta situação, para ajudar as mulheres a deixarem a prostituição. Não há vazio legal. O sistema abolicionista, que temos, é uma moldura como outra qualquer”, defende. “Quem diz que há vazio legal, porque não defende o modelo sueco, que pune o cliente?”

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