O querer e o poder

Afirmámo-nos já dispostos a encarar o alargamento do âmbito dos modelos possíveis, desde que eles venham a manter-se sempre potencialmente abertos a todos.

Devemos ter forte respeito por quantos hoje têm a responsabilidade de conduzir e intervir na política europeia de Portugal, seja a nível governativo, seja no plano parlamentar. Não apenas porque este é um Portugal diferente – saído de um periodo de grande fragilidade económico-financeira, que deixou fortes sequelas – mas, principalmente, porque o nosso país tem perante si uma Europa com uma inédita complexidade, atravessada por uma crise que afeta o seu projeto, sujeita a linhas de clivagem nunca antes vistas.

Há a sensação de que aquilo que consagrou o sucesso de seis décadas de integração pode, pela possível conjugação de circunstâncias não há muito tidas por implausíveis, colapsar ou ter uma deriva, de recentragem ou partição, que definitivamente o descaraterize. Daí a extrema delicadeza, quase única, deste momento, para o qual se exige visão, coragem e sentido de Estado, por parte de quantos, entre nós, acreditam, não apenas na Europa mas, muito particularmente, na importância de Portugal dever continuar a apostar na inserção europeia como o eixo mais seguro para a objetivação dos interesses do país no quadro global.

Dir-se-á que muito do que ocorreu com Portugal, na Europa do passado, já não dependeu, no essencial, da nossa vontade. A título de exemplo, lembraria que fomos obrigados, por razões ditadas por imperativos insuperáveis, a sofrer processos como o progressivo desmantelamento de proteção comercial, mobilizado pela pressão da globalização, ou a avalanche dos alargamentos, por determinantes políticas que não era possível controlar. Ambos os movimentos tiveram impactos sérios para a nossa economia, mas foi possível, nessa tal Europa de outros tempos, negociar fórmulas compensatórias que permitiram algum amortecimento dos efeitos dessas irrecusáveis decisões.

Essa Europa, contudo, acabou. A solidariedade e a preeminência das políticas estruturais e de coesão, voltadas para a Europa mais pobre, começam a diluir-se no horizonte e as consequências orçamentais, ditadas pelo "Brexit", agravá-las-ão ainda mais. Quero com isto dizer que, vindo a repetir-se, num contexto muito diverso, uma possível evolução desfavorável de algumas outras políticas, cujos novos termos de referência Portugal continue a ter dificuldade em controlar, do nosso horizonte desapareceram já os importantes mecanismos compensatórios do passado. É muito mais dificil defender os interesses próprios de Portugal na Europa de hoje, e temos de estar preparados para ter de assumir as consequências disto. As prioridades europeias são outras e, por essa razão, a definição de uma rigorosa política de alianças é hoje de uma importância vital.

É neste contexto que surge, com uma força impositiva que a recente reunião dos powers that be da Europa parece ter tornado incontornável, a questão das “cooperações reforçadas” (a também chamada flexibilidade ou integração diferenciada) ou das “cooperações estruturadas” na área militar. Este está longe de ser um tema novo e a diplomacia portuguesa conhece-o como poucas – porque Portugal, desde há muito, o trabalhou com afinco, controlando com imenso cuidado a sua inserção institucional nos tratados. Mas isso é apenas o passado e nada nos garante que novos e mais complexos modelos não possam por aí surgir.

As declarações oficiais portuguesas foram, a este respeito, de grande prudência. Com a autoridade que temos pelo facto de ter estado, desde sempre, nos processos mais inclusivos da Europa (de Schengen ao euro, antes no Protocolo social e, depois, nas questões de Justiça e Assuntos Internos), afirmámo-nos já dispostos a encarar o alargamento do âmbito dos modelos possíveis, desde que eles venham a manter-se sempre potencialmente abertos a todos. E, claro, afirmámos o nosso desejo de continuar a integrar o que aí vier a criar-se, em termos de reforço de algumas políticas.

O título deste artigo não é, porém, casual. É que até agora, com exceção do euro (que obedeceu a critérios próprios), foi apenas a vontade política nacional que sobredeterminou o nosso integracionismo à outrance, pelo interesse assumido em evitar que Portugal, ao não estar presente nessas instâncias, viesse a pagar custos de periferização. Por essa razão, a grande preocupação que, a meu ver, o nosso país deverá agora ter, nos debates que se seguirão, é procurar evitar que quaisquer novos mecanismos de reforço integrador venham a derivar de condicionalidades de natureza económico-financeira, com impactos orçamentais, perante os quais a vontade política não seja suficiente. Esse, a meu ver, é o grande risco que Portugal tem no seu horizonte europeu imediato.

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