Depois do fogo

As aldeias e florestas que sofreram com os incêndios ficam entregues à sua própria sorte. Manuel, Carlos, Fátima, Irménia ou Joaquim perderam casas, animais, produções agrícolas. Esta terça-feira, o Conselho de Ministros aprova um conjunto de medidas para a reforma da floresta.

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No relatório do Instituto da Conservação da Natureza e das Florestas sobre os incêndios de 2016, o que começou em Janarde e afectou o concelho de Arouca, a 8 de Agosto, surge como um gigante. O fogo incontrolável que por ali andou, varrendo encostas e vales, ameaçando aldeias, queimando casas, animais, pastos e florestas, consumiu 21.910 hectares. Para que se perceba a sua dimensão, compare-se com o segundo incêndio mais devastador do país: foi em Covas/Vila Nova de Cerveira, a 7 de Agosto e consumiu 8852 hectares. Ou pense-se nas imagens terríveis da Madeira a ser consumida pelo fogo e atente-se que ali as chamas consumiram 1666 hectares. Segundo os dados da GNR, no ano passado, o total da área ardida em Portugal ultrapassou os 161 mil hectares, mais 93 mil do que no ano anterior. O número torna 2016 o pior ano da última década, no volume de área perdida para as chamas. Se os números dizem pouco, pegue-se no carro para ir ver o concelho que tem a peculiaridade de pertencer à Área Metropolitana do Porto, apesar de ser distrito de Aveiro.

Talvez uma pessoa se sinta esperançada pelo verde que vai despontando entre o negro da terra queimada. Os eucaliptos, sobretudo, já começaram a crescer de novo e o que nasce no terreno ardido parece ainda mais viçoso, pelo contraste com o negro de fundo. Mas basta parar em qualquer povoação que se encontre pelo caminho para perceber uma certa desesperança de quem sabe que, mais cedo ou mais tarde, a tragédia vai voltar. A descrença de quem está cansado de ver planos governamentais falharem. E a persistência de quem sabe que não vai partir, que aquela é a sua terra e que, por isso, há que deitar mãos à obra. Outra vez.

E há também a revolta, que se sente nas palavras de cada um dos homens e mulheres que o P2 ouviu. Todos eles perderam algo. Todos têm agora que decidir o que vale a pena refazer, depois de o fogo, o calor, os directos televisivos e as visitas dos responsáveis políticos terem terminado. Ninguém fala em ser indemnizado pelas perdas: a menos que seja declarado o estado de calamidade, não há apoios ou é demasiado complicado tentar aceder a uma verba que nunca pagaria o que se perdeu. Ouve-se Manuel, Joaquim ou Carlos e o diagnóstico fica feito. Campos abandonados; poucas queimadas no Inverno; rebanhos tão pequenos que não desbastam, como antes faziam, o mato; falta de coordenação e de cruzamento de intervenção de quem devia proteger a floresta. Tudo razões para que cada um encolha os ombros na certeza de que, daqui a uns anos, o que aconteceu em Agosto de 2005 ou 2016 vai voltar a acontecer.

E nem o facto de a reforma da floresta estar, de novo, em cima da mesa, com 12 diplomas apresentados ao Conselho de Ministros a 27 de Outubro, lhes merece grande alento. Daquela dúzia de documentos, dois já entraram em vigor – um relativo a um projecto-piloto para o Parque Nacional da Peneda-Gerês e um outro que prevê, até 2018, o reequipamento das 44 equipas existentes de sapadores florestais e, até 2020, a criação de 20 novas equipas destas. Os outros dez documentos estiveram em discussão pública e deverão ser aprovados no Conselho de Ministros da próxima terça-feira. Entre estes, estão a criação do Banco de Terras público, as limitações à plantação do eucalipto, o alargamento de redes de videovigilância ou o aumento de áreas em que se praticam acções de prevenção, como os fogos controlados, durante o Inverno. Será desta? Ainda é muito cedo para acreditar. A memória do que se perdeu ainda está demasiado fresca. E as encostas negras em redor ainda são a realidade para que estas pessoas acordam todos os dias.

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Manuel Martins, 68 anos

“Vamos ver se ganho coragem…”

No meio do pinhal, de calças de tropa e T-shirt castanha, Manuel Martins quase se confunde com as suas árvores. Não fosse o verde ter-se sumido dali. Dos cem hectares de floresta que adquiriu ao longo dos anos, perdeu-se tudo nos incêndios do Verão passado. Aqui, neste núcleo de 25 hectares, perto da aldeia de Regoufe (Arouca), onde vive, sobram apenas troncos queimados prontos para ser cortados e vendidos por uma fracção daquilo que valeriam se as chamas não tivessem chegado. O desalento anda por ali a rondar, tal qual o fogo, e ouve-se nas palavras de Manuel, quando, questionado sobre se vai voltar a plantar, a insistir, responde: “Sabe que eu nem sei? Ainda estou indeciso.” É que não foi só o pinhal que se perdeu. Foram sobreiros com mais de 30 anos, prontos para dar cortiça. “Uma data deles.” Castanheiros que já estavam a produzir. Sobre estas árvores, ele não tem dúvidas: “Para mim, acabou.” Sobre o pinhal, ainda se sente o encolher de ombros de quem duvida, mas não está preparado para desistir. “Vamos ver se ganho coragem. Não será fácil…”

Manuel está habituado a dificuldades. Esteve em Moçambique, na Guerra Colonial, e quando regressou a casa teve de escolher entre duas opções – ficar e ajudar a família ou seguir os trilhos percorridos por tantos outros, galgando fronteiras e emigrando. Escolheu a primeira. “Aqui era tudo mato. A floresta, na altura, pareceu-me o melhor investimento”, diz. E, não fosse o fogo, assim era. “[A venda do pinhal] Dava para 10 mil euros anualmente. Era uma reforma, já podia competir com os emigrantes. Assim não, foi-se embora”, diz, entre as árvores queimadas em Agosto.

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Até chorei, quando aí andaram. Mas diziam-me: ‘Vá-se embora, que tomamos conta.’" Manuel Martins

Aquela noite ainda lhe está gravada na memória. “[O fogo ] Veio dali, de Telhe. Trabalharam muitos bombeiros, várias entidades, vários comandos. Até acho graça. Quando estava tudo queimado, começou a ouvir-se que o fogo estava controlado.” Ao início, parecia que os bombeiros iriam travar as chamas. “Até chorei, quando aí andaram. Mas diziam-me: ‘Vá-se embora, que tomamos conta.’ E conseguiram segurá-lo.” O pior foi depois. “Eu já estava a dormir, era 1h, 2h e ligou-me um amigo do Porto, porque estava a ver notícias na televisão. Vim à janela e o fogo já ia por aí abaixo.”

Foi-se o pinhal, um palheiro, perderam-se dois tonéis de vinho, um com mil litros, outro com 750 litros. Perdeu-se pasto e gado. “Levantou-se um vento. As faúlhas caíam por ali, ele parecia que ia adiante e voltou atrás.” O fogo, essa entidade viva e imprevisível, deixou um rasto que ainda marca de negro as encostas em volta. E as árvores mortas de Manuel, que ele olha, como quem pensa se ainda tem tempo para tentar de novo. Mais 30 anos para as ver crescer e a esperança irracional de que, durante todo esse tempo, não venha outro fogo comer tudo.

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Fátima Martins, 55 anos

“Foi um vendaval que se levantou na noite”

Hoje é a vez de Fátima Martins sair com o rebanho comunitário da aldeia de Regoufe. Já foram centenas de cabras, hoje são cerca de 70 ou 80 animais que os proprietários libertam dos currais, guiando-os para o centro da aldeia, onde Fátima os aguarda. Vai levá-los para Drave, caminhando, firme, por encostas pedregosas que se afiguram inultrapassáveis, mas que as suas pernas fortes percorrem como se caminhasse numa estrada lisa de alcatrão. “Foi de noite que o fogo passou por aqui. Foi um vendaval que se levantou. Toda uma conjugação de factores… Há 11 anos também rondou por aqui, mas nada tão grande como em Agosto”, diz, quase pronta para partir.

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Foi um vendaval que se levantou. Toda uma conjugação de factores… Há 11 anos também rondou por aqui, mas nada tão grande como em Agosto” Fátima Martins

A consequência mais visível na sua vida foi a perda de pasto para o rebanho, que agora tem de procurar alimento em terrenos mais longínquos, como Drave, para onde se encaminha, a quase cinco quilómetros de distância. Mas, se é para falar de dificuldades relacionadas com o rebanho, Fátima prefere falar dos lobos, que ainda “há 15 dias mataram uma cabra”. Manuel Martins, o vizinho que perdeu o pinhal, também se queixa das alcateias da serra da Freita. “Antes também havia, mas eles tinham alimento. Agora, não”, diz. Há uns tempos, comeram-lhe seis ovelhas, mas só foi indemnizado por três, já que das outras não ficou qualquer rasto. “As indemnizações não cobrem o valor do animal, mas também não tenho os animais para esse fim”, diz o homem. Fátima, entretanto, já partiu. Uns curtos minutos e desaparece, entre pedras afiadas.

Carlos Alves, 37 anos

“Passei a noite a bombar água para cima dos mirtilos”

Do terreno de Carlos Alves, onde crescem os mirtilos que plantou há uns meses, a vista não é bonita. A encosta em frente está coberta de restos de árvores tornadas castanhas. O fogo de Agosto, que castigou Arouca, também passou por Fornelos, este lugar de Cinfães, na fronteira com aquele concelho, e rondou, ameaçador, a plantação de Carlos. “Nessa noite, do alto da serra, vi que havia cinco focos de incêndio. Metia medo, vê-lo a cavalgar os montes. Passou por três serras – Freita, Gralheira, Montemuro – e eu, ao aproximar-me daqui, ouvia guinchos. Pensei que era o fogo, as árvores a estalar. Só depois percebi que eram os javalis, as raposas e os coelhos a serem apanhados pelo incêndio”, conta.

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Gastaram-se quase 20 mil litros de água. Eu furei o sistema de rega e na leira mais próxima da estrada fui deitando água para o ar. Passei a noite a bombar água para cima dos mirtilos." Carlos Alves

Foi um pesadelo. A plantação de mirtilos, apoiada por fundos comunitários, estava no primeiro ano de vida. Carlos viu o fogo crescer, lá longe, e ir-se aproximando. De madrugada, estava aos pés do seu terreno. E ele também. “Já não dormi. Quando cheguei, os bombeiros já cá estavam, na estrada. Gastaram-se quase 20 mil litros de água. Eu furei o sistema de rega e na leira mais próxima da estrada fui deitando água para o ar. Passei a noite a bombar água para cima dos mirtilos. Não ganhei para o susto. Está aqui o meu sustento.”

O esforço compensou. De manhã, as chamas foram travadas. A plantação salvou-se. A ventania assustadora transportou réstias do fogo por cima do campo de Carlos, atirando-o para um terreno mais abaixo. “Ao nascer do dia, estava tudo controlado”, recorda. Ele ainda havia de passar mais uma noite em claro, a ajudar amigos de Arouca que, 24 horas depois dele, também tiveram de deitar mãos à água para evitar o pior. Agora, só a encosta queimada em frente ao seu terreno lhe lembra quão perto esteve de perder o investimento feito e de ser incapaz de cumprir a obrigatoriedade de manter o negócio pelo menos durante cinco anos. “Ainda não tinha, mas vou fazer um seguro”, garante.

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António Óscar, 54 anos

“As cinzas matam os peixes. Tempo para recuperar? Nem uma geração”

A terra e as árvores não sabem mentir. Quando são apanhadas pelo fogo, cobrem-se de negro-luto, que mostra ao longe o que lhes aconteceu. Mas e os rios? Quem pensa neles depois de o fogo passar? Em Arouca, pensam, pelo menos, os membros da Associação Urtiarda, que desde os anos 1990 tomam conta dos rios Urtigosa e Arda, afluentes do Douro.

O professor António Óscar, um dos fundadores da associação, aponta os depósitos de cinza negra que se acumulam no leito e nas margens do Urtigosa. “O leito via-se como um espelho e não tinha nada disto”, diz, apontando as terras negras. “Com a dimensão da área que ardeu e as chuvas que vieram, já sabíamos que as consequências iam ser estas. Se vier uma cheia, acaba por limpar, mas, entretanto, temos esta fase em que vem tudo por aí abaixo. Muito poucos peixes vão conseguir escapar.” Porque a face menos visível dos grandes incêndios é esta. O cheiro do que morre na água, o negro que cobre o que antes era transparente.

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Com a dimensão da área que ardeu e as chuvas que vieram, já sabíamos as consequências (...) Muito poucos peixes vão conseguir escapar.” António Óscar

“As cinzas matam os peixes. Tempo para recuperar? Nem uma geração [chega]. De 15 em 15 anos, é isto.” O trabalho da associação tem permitido que aquelas águas se mantenham limpas, que as trutas cresçam de forma saudável, que a pesca seja permitida, de forma muito controlada, entre Março e o final de Maio. Mas, este ano, António ainda não sabe dizer se a época de pesca, que pretende abrir, se poderá manter durante o período normal. “Este problema com as cinzas é do mais grave que há para a fauna piscícola, que não resiste a este tipo de situação”, diz. “A água costuma ser cristalina”, diz, com pena. “E no rio Paiva a situação é igual”, lamenta.

Joaquim Ferreira, 78 anos. Irménia Duarte, 76 anos

“As minhas ovelhas eram muito boas, uma maravilha. As minhas ovelhas…”

Do alto do Gamarão, o terreno em volta é uma mancha negra com pequenos tufos de verde a despontar, orgulhosos, na paisagem. A renovação espontânea dos sobreviventes de sempre já começou. Mas, em Gamarão de Baixo, Joaquim Ferreira e a mulher, Irménia Duarte, continuam a ter, sobretudo, o terreno queimado como horizonte.

As encostas que se erguem sobre a aldeia de Arouca são uma memória viva do último grande incêndio, que lhes levou mais do que gostam de lembrar. Assim como os cachos queimados de uvas que ainda pendem, aqui e ali, na ramada caseira.

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Se havia de vir vento, foi naquela noite. Era uma roncaria que até metia medo” Joaquim Ferreira

“Ele vinha lá do fundo”, diz o homem, que se serve de uma vassoura virada ao contrário como se de uma muleta se tratasse. Irménia, duas muletas verdadeiras presas nos braços, entra na conversa: “Estávamos à espera dele.” Joaquim pega na lembrança: “Estava aqui, debaixo da ramada. Só pensava: não escapamos aqui hoje. De um lado e do outro… Só quem estava aqui e Deus no céu é que sabem. Meti-me em casa e esperei.” Não houve tempo para bombeiros. Foi um instante. Meia hora se tanto. ”Se havia de vir vento, foi naquela noite. Era uma roncaria que até metia medo”, lembra Joaquim. Num minuto, o fogo estava na encosta lá longe, no outro, noite cerrada, passou pelos terrenos inclinados do casal.

“Quando os meus filhos vieram, já tinha explodido tudo. O pasto, as bandeiras de milho, a abegoaria, as batatas e cebolas. Fiquei sem nada”, diz o homem. E tinham morrido também as ovelhas. O palheiro com as seis ovelhas que lá estavam dentro foi levado pelo fogo. Joaquim não se ficou. O abrigo foi reconstruído, três novas ovelhas compradas, e lá estão, agora. Mas nada disso consola Irménia. “Depois do que aconteceu, até parece que andava intoxicada. Quando tiraram as ovelhas que lá morreram para as enterrar, tive de fugir. As minhas ovelhas eram muito boas, uma maravilha. Primeiro que me passasse da cabeça... As minhas ovelhas…”

O fogo já é conhecido do casal. Recordam um outro incêndio, há uns 30 anos pelas suas contas, “mas não a pólvora que agora veio”, compara ele. E partir, sair deste terreno inclinado e tão difícil de cumprir para quem precisa de vassouras e muletas para caminhar? “E ir para onde? A gente foi aqui criada”, diz Irménia. O marido, num eco: “Para onde é que a gente ia sair?”

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Manuel Vinagre, 61 anos

“Acordar e ver estas encostas todas negras é uma dor de alma”

As colmeias ainda lá estão, coloridas e claras, no meio de árvores queimadas. Parece impossível que ali estivessem naquela noite em que o fogo devorou tudo em volta. Mas estavam. E a prova que estavam é que, ao contrário do que se podia pensar, nem todas se salvaram. Manuel Vinagre perdeu duas colmeias e as abelhas que lá estavam. As outras, vizinhas tão próximas, salvaram-se num daqueles caprichos que só o fogo conhece, tocando aqui e não ali. “As abelhas [das colmeias que se salvaram], como era de noite, não morreram, porque estavam lá dentro. Quanto mais calor estiver por fora, mais fresco é por dentro”, diz o homem que depois de 18 anos emigrado na Suíça regressou a Bordozedo, S. Pedro do Sul, para se dedicar à terra.

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Se ardesse no Inverno [com queimadas], já não ardia no Verão. É preciso limpar, não deixar combustível no mato, e isto tem de começar com o Estado.” Manuel Vinagre

Vende mel, tem milho, oliveiras, videiras e azeite. Tudo “pequena agricultura”, com excepção do mel, que chega às duas toneladas. O fogo não lhe podia ser estranho. Quem vive por aqui, entre montes, conhece-o bem de mais. Em 2005, também em Agosto, já andara pelo seu terreno, pelos seus cortiços. Era o dia 4. Naquele dia ele também foi ali, tentar protegê-los. A família, de uma aldeia vizinha, afligiu-se porque, rápido como as labaredas, correu o boato de “que tinha ardido um homem que andava nas abelhas”. Não era verdade. Mas Manuel cansa-se. Cansa-se da repetição de algo que acha que podia ser evitado. “Este ano foi o maior incêndio. Se ardesse no Inverno [com queimadas], já não ardia no Verão. É preciso limpar, não deixar combustível no mato, e isto tem de começar com o Estado.” E cansa-se do que vê, diariamente, nos últimos meses, e continuará a ver, até que tudo se regenere. “Acordar e ver estas encostas todas negras é uma dor de alma.”

Manuel Tavares, 70 anos

“Vem o vermelho. Vem outra vez e queima tudo”

Há um vento gelado a atravessar a aldeia da Castanheira, na serra da Freita, e talvez por isso não se vê vivalma. O fumo sai da chaminé de uma casa, mas as batidas na porta não recebem resposta e desistir parece o único caminho quando, num dos campos em volta, se vislumbra um homem magro, de enxada às costas. Está de regresso a casa, ao almoço reparador e ao interior aquecido que faça esquecer o frio intenso que está lá fora. Mas Manuel Tavares não tem pressa. Parece ignorar a primeira pergunta, mas com um sorriso leve começa a falar. “Já cá esteve a televisão, no Verão”, diz. Os jornalistas apareceram depois de o fogo ter entrado na aldeia. Era Verão, mas o vento estava forte. “Consoante está hoje”, revela o homem de sorriso fácil, recordando aquele dia em que as chamas, depois de terem sido aparentemente controladas, num sábado à tarde, regressaram madrugada fora, obrigando-o a ficar a pé, para evitar consequências piores. “Eram cinco, seis da manhã. Nunca mais ninguém teve mão naquilo. E, felizmente, tinham-se feito queimadas em Dezembro [de 2015], senão ainda seria pior”, diz.

Manuel Tavares indica o caminho. Ali na aldeia arderam palheiros de pedra e uma casa fechada, cujos donos emigraram. No palheiro estavam vacas arouquesas, que não conseguiram escapar. Manuel entra na construção em pedra, sem telhado e em que portas e janelas são agora dois buracos vazios atravessados pelo vento corredor de Inverno. Entre as pedras enegrecidas pelo fogo, aponta para os espaços à sua frente: “Havia duas vacas aqui, mais duas ali. Morreram todas.” Do outro lado da rua, a casa que chegou a interessar a um potencial comprador de S. João da Madeira, em busca do sossego e da beleza da serra da Freita, é agora uma ruína queimada. “Já viu? Olhe se tinha comprado” – foi isto que o homem disse a Manuel depois de ver o estado em que ficou a habitação.

Manuel Tavares, agricultor, aldeia de Castanheira Adriano Miranda/Público
"Vem o vermelho. Vem outra vez e queima tudo" Adriano Miranda/Público
"Há um vento gelado a atravessar a aldeia de Castanheira" Adriano Miranda/Público
"Os fihos emigraram para França e de agricultura, diz, "não percebem nada" Adriano Miranda/Público
"Havia duas vacas aqui, mais duas ali. Morreram todas" Adriano Miranda/Público
"O pinheiro não vem mais, só o eucalipto é que dá.E daqui por cinco anos já sabemos que é outra vez o mesmo" Adriano Miranda/Público
"Na aldeia arderam palheiros de pedra e uma casa fechada, cujos donos emigraram" Adriano Miranda/Público
Carlos Alves, produtor de mirtilos, aldeia de Fornelos Adriano Miranda/Público
"Passei a noite a bombar água para cima dos mirtilos. Não ganhei para o susto" Adriano Miranda/Público
"Ao nascer do dia estava tudo controlado" Adriano Miranda/Público
"Agora,só a encosta queimada em frente ao seu terreno lhe lembra quão perto esteve de perder o investimento" Adriano Miranda/Público
António Costa, membro da Associação Urtiarda, Arouca Adriano Miranda/Público
"As cinzas matam os peixes. Tempo para recuperar? Nem uma geração" Adriano Miranda/Público
"A terra e as árvores não sabem mentir" Adriano Miranda/Público
Joaquim Ferreira, reformado, aldeia de Gamarão de Baixo Adriano Miranda/Público
"As minhas ovelhas eram muito boas, uma maravilha. Primeiro que me passasse da cabeça...As minha ovelhas..." Adriano Miranda/Público
"Depois do que aconteceu até parece que andava intoxicada" Adriano Miranda/Público
"Quando os meus filhos vieram já tinha explodido tudo" Adriano Miranda/Público
"Estava aqui, debaixo da ramada. Só pensava: não escapamos aqui hoje" Adriano Miranda/Público
"E ir para onde? A gente foi aqui criada" Adriano Miranda/Público
Irménia Duarte, aldeia de Gamão de Baixo Adriano Miranda/Público
Fátima Martins, pastora, aldeia de Regoufe Adriano Miranda/Público
"Foi um vendaval que se levantou na noite" Adriano Miranda/Público
"Caminhando, firme, por encostas pedregosas que se afiguram inultrapassáveis" Adriano Miranda/Público
"Já foram centenas de cabras, hoje são cerca de 70 ou 80 animais" Adriano Miranda/Público
"As indemnizações não cobrem o valor do animal, mas também não tenho os animais para esse fim" Adriano Miranda/Público
Manuel Vinagre, apicultor, aldeia de Bordozedo Adriano Miranda/Público
"Acordar e ver estas encostas todas negras é uma dor de alma" Adriano Miranda/Público
"O fogo não lhe podia ser estranho. Quem vive aqui, entre montes, conhece-o bem demais" Adriano Miranda/Público
"Este ano foi o maior incêndio" Adriano Miranda/Público
"Os cortiços ainda lá estão, coloridos e claros, no meio de árvores queimadas" Adriano Miranda/Público
"A família, de uma aldeia vizinha, afligiu-se porque, rápido como as labaredas, correu o boato 2que tinha ardido um homem que andava nas abelhas" Adriano Miranda/Público
Manuel Martins, reformado, aldeia de Regoufe Adriano Miranda/Público
"Vamos ver se ganho coragem. Não vai ser fácil..." Adriano Miranda/Público
"Aqui era tudo mato.A floresta, na altura, pareceu-me o melhor investimento" Adriano Miranda/Público
"Aquela noite ainda lhe está gravada na memória" Adriano Miranda/Público
"Foi-se o pinhal, um palheiro, perderam-se dois tonéis de vinho, um com mil litros, outro com 750 litros" Adriano Miranda/Público
"É que não foi só o pinhal que se perdeu. Foram sobreiros com mais de 30 anos, prontos para dar cortiça" Adriano Miranda/Público
"O fogo incontrolável consumiu 21.910 hectares" Adriano Miranda/Público
"Apagadas as chamas, passado o calor do Verão, as aldeias e florestas ficam entregues à sua própria sorte" Adriano Miranda/Público
"Talvez se sinta esperançado pelo verde que vai despontando entre o negro da terra queimada" Adriano Miranda/Público
"A esperança é quase nenhuma: daqui a uns anos, dizem, vai repetir-se tudo outra vez" Adriano Miranda/Público
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Manuel Tavares, agricultor, aldeia de Castanheira Adriano Miranda/Público

Ele percebe o desalento. Não se vai embora (“para onde?”), mas há coisas que já não faz. Estende o olhar como se ainda visse o passado e lembra como ali já existiram “dois a três mil animais” e de como tudo em redor era arborizado. “Investir dinheiro aqui? Ia gastar dinheiro a arborizar? O pinheiro não vem mais, só o eucalipto é que dá. E daqui por cinco anos já sabemos que é outra vez o mesmo. O problema é esse. Foi assim em 2005, em 2010 e em 2016. Vem o vermelho. Vem outra vez e queima tudo. É esquisito”, diz. Há uns tempos, comprou um terreno. O fogo levou-lhe o milho, o centeio, as batatas. Os filhos emigraram para França e de agricultura, diz, “não percebem nada”. Gostam de ali ir, mas só para uma temporada, nunca para se fixarem no local onde nasceram. “Não tento mais”, diz Manuel, mesmo que a enxada nas costas pareça querer desmentir esta resolução. E, aparentemente indiferente ao frio intenso, afasta-se em direcção a casa.

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