Um míssil no porta-aviões

Se a França “cair”, a Europa, como a conhecemos, cairá com ela, mesmo que ainda seja difícil antecipar as possíveis saídas para essa catástrofe política.

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1. É quase escusado dizer que, na maioria das capitais europeias, as eleições presidenciais francesas estão a tirar o sono a muita gente. A pouco mais de um mês da primeira volta, tudo parece ainda possível. A sombra de Marine Le Pen pesa cada vez mais sobre um país que é central para a integração europeia, desde o momento da sua fundação. A crise da direita abre-lhe ainda mais espaço. A sua eleição, mesmo que improvável, seria um míssil no porta-aviões. François Hollande, numa entrevista a seis jornais europeus, lembrou que nunca o partido nacionalista foi tão forte como hoje. O Presidente francês recebeu também ontem, em Versalhes, os líderes dos maiores países da União Europeia, menos o Reino Unido, para pensar o que pode e deve acontecer na cimeira que vai assinalar os 60 anos do Tratado de Roma, a 25 de Março. À mesa estiveram líderes com sensibilidades distintas quanto ao que é preciso fazer. Hollande quer deixar alguma “arrumação” no eixo Paris-Berlim, onde as bases de entendimento não abundam. Na mesma entrevista, disparou em duas direcções. Insistiu na necessidade de uma Europa a várias velocidades, para a qual já conquistou a chanceler, mesmo que não se saiba ainda em que termos. Apelou a Theresa May para que não se desvincule de uma futura defesa europeia, fundamental no actual quadro de instabilidade mundial. Os dois países sempre se assumiram como as duas potências militares de vocação global.

2. A Europa viveu as últimas décadas assente num equilíbrio de poder entre os três “grandes”: França, Alemanha e Reino Unido. Cada um dos maiores países da União encontrava num terceiro uma forma de contrabalançar o outro. Se Berlim precisava de Londres para manter um modelo de economia aberta e a liberalização dos mercados, Paris via na Grã-Bretanha um “companheiro de armas” que lhe permitia balançar o poder económico alemão. A crise europeia, com o "Brexit" e a afirmação da Alemanha, acabou por abanar profundamente este equilíbrio. A América, com a eleição de Trump, deixará provavelmente de exercer a missão de garantir que nenhum país se sobrepusesse aos outros. O rearmamento da Alemanha, imposto pelo compromisso dos países da NATO com um gasto de 2% do PIB na defesa, não é ainda totalmente pacífico – nem para os europeus, nem para os alemães. Mas o tempo de uma Alemanha que se desvinculava das acções militares de Londres e de Paris já desapareceu. Há cinco anos, Merkel ainda dizia que não tinha nada a ver com a intervenção militar da França no Mali. Hoje, diz o contrário, porque percebeu o terrorismo e a nova ameaça a Leste, vinda de Moscovo. Os dois países querem agora dotar Bruxelas de um “pequeno” quartel-general capaz de coordenar uma operação de natureza militar, que esteja fora do âmbito da Aliança (ontem, os chefes da diplomacia e os ministros da Defesa decidiram a favor de um embrião desse quartel-general apenas para missões de treino militar noutros países). Mas o desenho do que poderá ser essa defesa europeia ainda está no início e não pode depender apenas da vontade de Merkel e de Hollande. A Alemanha ainda precisa da França para se sentir confortável no papel de liderança europeia. Os governos de pendor nacionalistas que se instalaram em Varsóvia ou Budapeste, tentados por uma retórica antigermânica, não deixam a chanceler descansada. Como escrevia Gideon Rachman no Financial Times, tudo o que a chanceler não quer é uma Alemanha isolada no centro da Europa.

3. Outros equilíbrios fundamentais estão em fase de acelerada mutação. O equilíbrio entre Conselho e Comissão está a ser posto em causa, claramente a favor dos governos. A erosão do poder da Comissão é prejudicial para os países mais pequenos, que deixaram de ter nela o garante da defesa dos seus interesses contra os grandes. A crise financeira e económica, que abalou profundamente a União Monetária, criou mais um desequilíbrio que acabará por ser insustentável: entre os países do Norte e os do Sul. A França é, justamente, o único país que tem lugar nos dois lados e uma vocação de charneira.

Se a França “cair”, a Europa, como a conhecemos, cairá com ela, mesmo que ainda seja difícil antecipar as possíveis saídas para essa catástrofe política. Na Itália, a instabilidade política vai manter-se. Na Holanda, que continua a ser rica, a eventual vitória de Geert Wilders (15 de Março) e a dispersão de votos por um número anormalmente elevado de partidos, dificultará a estabilidade governativa e aumentará a pressão para um referendo. E nem é preciso dizer que, se Le Pen conseguir 40% dos votos na segunda volta e a capacidade de eleger algumas dezenas de deputados nas legislativas (as sondagens variam entre 40 e 80), nem a França nem a Europa voltarão a ser as mesmas.

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