A banalidade como arte

O olhar de Anne Tyler é de alguém que se enternece com as suas personagens, mesmo quando estas lhe causam desconforto e irritação.

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Tyler explora a banalidade das suas personagens, de lugares, de épocas, de atmosferas e afasta tudo o que é glorioso, apoteótico ou transcendente EAMONN MCCABE/GETTY IMAGES

Os filósofos que sempre consideraram o romance como um género inferior — Hegel, por exemplo, coloca-o muito abaixo da poesia e Lukács refere que o desenvolvimento do mesmo representa uma ruptura em relação ao épico, no qual o herói (do sexo masculino, evidentemente) é alguém em perfeita sintonia com o mundo —seriam certamente muito críticos em relação à obra de Anne Tyler. A escritora norte-americana, vencedora de um Pullitzer e autora de contos e romances —seis dos quais adaptados ao cinema –, prefere explorar a banalidade das suas personagens, de lugares, de épocas, de atmosferas e afasta resolutamente tudo o que é glorioso, apoteótico ou transcendente. Jane Austen, frequentemente citada quando as obras de Tyler são analisadas, quis, no seu tempo, fazer algo diferente e inflectir o rumo “romântico” que o romance tinha tomado, interessando-se sobretudo pela descrição de uma realidade provável, habitada por pessoas (personagens) passíveis de serem identificadas e, portanto, reconhecíveis por parte de qualquer leitor.

Tyler segue essa norma e as suas tramas, que recriam as populares sagas familiares, desenvolvem-se sempre com protagonistas que fazem parte da chamada “gente comum” ligada por fios invisíveis, obviamente representados, aqui, pelo Carrinho de Linha Azul do título.

Na família Whitshank não existe nada “digno de nota”; nenhum deles é ou foi famoso, possuem uma aparência física vulgar e não são donos de excepcional inteligência. (“Ficar parado no mesmo lugar: encaravam isso como uma virtude. Três dos quatro filhos de Red e Abby moravam a vinte minutos dos pais. Não há nada de notável nisso.” pág. 65). No entanto, esta bem vincada normalidade, que se assemelha muito à felicidade, começa a ser abalada, quando o livro começa. Abby está preocupada com um dos filhos, Denny, um tipo instável e misterioso que passa meses sem dar notícias e que, quando telefona, lhe causa ainda mais perplexidade com as suas lacónicas e desarmantes mensagens. E Abby começa a dar sinais de perturbações mentais. Não que as suas súbitas ausências, distracções, troca de nomes e tendência para vaguear fora de casa em camisa de noite se possam qualificar como demência! Mas a instabilidade que tais comportamentos acarretam, são desvios no desenrolar dos dias. Os filhos, preocupados, decidem ocupar a casa e tomar conta dos pais; mas os confrontos de ideias, sensibilidades e hábitos criam um clima de desestabilização que culminará em tragédia.

Abby e o marido, Red, conheceram-se no Verão de 1959, criaram os quatro filhos — duas raparigas e dois rapazes, um deles “adoptado” — e parecem ter entrado na confusa insegurança da meia-idade. Denny, como se verificará mais tarde, é apenas um dos problemas que, subtilmente, se instala no espaço familiar. Os Whitshank fizeram sempre os possíveis (e os impossíveis) para serem vistos e avaliados como uma “família banal, auto-suficiente, feliz”. Essa normalidade é um bem precioso para quem subiu na vida, numa cidade como Baltimore, outrora florescente graças à indústria do aço, com zonas perfeitamente distintas, uma taxa de criminalidade elevada e um velho ressentimento que vem de longe, dos tempos da Depressão. No entanto, a família Whitshank orgulha-se dos seus fortes laços afectivos cimentados por histórias pessoais, transmitidas de geração em geração. A casa que habitam, uma grande moradia em Bouton Road, tinha sido originalmente concebida por Júnior, o pai de Red para um rico fabricante de têxteis, o senhor Brill. Mas Júnior apaixonara-se pela casa —“simples, confortável, com a bandeira americana a esvoaçar no jardim e uma banca de venda de limonada no passeio” —e acaba por a comprar para ele e para a mulher, essa Linnie Mae que o perseguiu até Baltimore e nunca mais o largou.

Tyler utiliza mudanças bruscas de tempo e de espaço para relatar os acontecimentos que remetem para os anos vinte do século passado quando Júnior chegou à cidade e se pôs a construir casas para os mais abastados, com o cuidado e o perfeccionismo de um amante. A casa de Boulton Road com o seu baloiço e as largas varandas a toda a volta, será o vínculo que unirá a família e determinará, também, o desfecho da história.

Anne Tyler é uma escritora hábil, capaz de contar histórias com uma certa facilidade enganadora, uma vez que tudo se encaixa na perfeição, apesar do caos aparente. É verdade que não tem o humor cáustico de Austen nem a tenaz perversidade de Updike mas o seu olhar é de alguém que se enternece com as suas personagens, mesmo quando estas lhe causam desconforto e irritação. Temas como o envelhecimento, a solidão, os mal-entendidos, o que fica por dizer, os ciúmes e os embates no espaço familiar, os laços que unem as pessoas e a necessidade de perdão e de empatia são a sua preocupação constante. Em O Carrinho de Linha Azul faz evoluir a acção em vários sentidos, acompanhando as vidas dos pais de Red e de outros intervenientes, em diferentes épocas, recorrendo a imagens do passado, do presente e vislumbres do futuro, numa teia tão bem construída como uma casa, cuja solidez parece indiscutível.   

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