O Hotel da esquina e a formação médica

Retirar a prerrogativa da aprendizagem ao SNS é uma machadada fatal no seu prestígio, no seu desenvolvimento e no aperfeiçoamento dos seus profissionais.

De uma assentada legislativa, o Ministério da Saúde decidiu encaminhar os profissionais do Serviço Nacional de Saúde (SNS) para instalações hoteleiras e hospitais privados, no âmbito da sua formação contínua. Os hospitais e centros de saúde do SNS deixaram de ser os centros de formação pelos quais sempre foram reconhecidos e valorizados. Agora, esse papel fica reservado para as salas de conferência dos hotéis e para os auditórios dos hospitais privados. No hospital público, aos olhos de todos, é que não!

O Decreto-Lei 5/2017 é inequívoco: formação acreditada patrocinada por indústria farmacêutica só fora do SNS! E isso, em tons de falsa moralidade, invocando deveres de transparência e ética que ficam bem em comunicados mas que não passam de futilidade demagógica ao percebermos, exatamente, qual o impacto desta medida.

Por total desresponsabilização do Estado, há décadas que toda a formação médica contínua e os eventos científicos realizados em hospitais e centros de saúde têm o apoio da indústria farmacêutica.

A formação médica contínua é essencial para a troca de informação e para a atualização permanente dos médicos, enfermeiros e outros profissionais. A troca de saberes, o contacto com a inovação e as novas tecnologias, a apresentação de casos e estudos tem sido feita no âmbito desses eventos. O desenvolvimento do SNS tem sido sustentado, há décadas, por esse esforço de ensino e aprendizagem permanente. As instalações dos hospitais e dos cuidados de saúde primários têm sido centros não só de cuidados de saúde assistenciais mas também de intensa formação.

Retirar essa prerrogativa ao SNS é uma machadada fatal no seu prestígio, no seu desenvolvimento e no aperfeiçoamento dos seus profissionais.

Toda a penugem de motivos pseudo-éticos desta decisão cai, irremediavelmente, quando percebemos que, se por um lado, os eventos formativos e científicos passam a ser proibidos em instalações do SNS; por outro lado, a intensa atividade de divulgação dos produtos comercializados pela indústria farmacêutica, e veiculada por milhares de delegados de informação médica, continua a ser ostensivamente permitida.

Este enorme paradoxo deita por terra qualquer pretensão de moralização e transparência. Esta decisão irrefletida vai inevitavelmente prejudicar a formação dos profissionais de saúde nas próximas décadas.

Mas, afinal, para que servem as Comissões de Ética dos hospitais, os Centros de Formação, os Diretores Clínicos e os Conselhos de Administração (diretamente nomeados pelo ministério) se perdem a competência para decidir sobre a formação que é ministrada na sua própria instituição?

A máscara da moralização desaparece quando o Ministério da Saúde está a enviar os profissionais de saúde para formação contínua no hotel da esquina e no hospital privado da zona. O SNS fica muito mais pobre.

 

Presidente da Secção Regional do Centro da Ordem dos Médicos

 

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