Tribunais não saem bem do retrato feito pelos seus dirigentes

Faltam pórticos de segurança e detectores de metais. E há celas sem alarme de incêndios, obrigatório por lei, e com baldes para apanhar a água da chuva. Este é o dia-a-dia nos tribunais.

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Há más condições de trabalho em muitas instalações judiciais e são várias as situações caricatas ADRIANO MIRANDA

Se uns problemas parecem caricatos, outros podem vir a ter consequências dramáticas. Todos os anos os dirigentes das 23 comarcas judiciais em que o país está dividido fazem um retrato da vida nos tribunais tal como ela é: repleta de carências. Os mais recentes relatórios de actividades, que respeitam ao período entre o final de 2015 e o Verão de 2016, espelham, em maior ou menor grau, o estado degradante em que têm de funcionar muitas instalações judiciais. Vários destes dramas logísticos – que contribuem com a sua quota-parte para a falta de celeridade mas também para fazer baixar o nível de qualidade da justiça portuguesa – constituem infracções legais. Na comarca-piloto de Sintra, porém, foram solucionados de forma aparentemente simples. Contactado pelo PÚBLICO, o Ministério da Justiça remeteu-se ao silêncio.

“Faltaram, desde o primeiro momento, os mais elementares meios e equipamentos para uma normal gestão da comarca”. Quem assim fala não está sequer no abandonado interior, afastado dos grandes centros urbanos: a reclamação é do presidente da comarca do Porto, Rodrigues da Cunha, que, no relatório de actividades referente ao ano judicial transacto, conta como os dirigentes desta circunscrição judicial se viram obrigados a colocar ao serviço da comarca bens e recursos próprios, por não lhe terem sido fornecidos nem veículos de serviço nem telemóveis.

Escasseiam juízes e procuradores, mas sobretudo funcionários judiciais, carência que se tornou crónica praticamente em todo o país. No caso dos oficiais de justiça, a sua falta “é de tal modo dramática e os seus efeitos negativos de tal modo profundos que dificilmente será possível recuperar das suas consequências a curto prazo”, avisa.

Algumas das situações chocantes que relata, admite constituírem infracções à lei: por exemplo, as celas do Tribunal de Execução de Penas, na Rua João das Regras, onde também se encontra instalada a secção de Pequena Criminalidade, “não têm sistema de detecção de incêndio, o que já causou alguns problemas.” Na primeira secção de Família e Menores, na Rua Barão Forrester, “a água entra através da cobertura, havendo necessidade de colocar baldes em pontos estratégicos para fazer a sua recolha e evitar a inundação dos espaços”. A humidade resultante destas infiltrações “provoca frequentes curto-circuitos e avarias nos quadros eléctricos”, sendo “persistente o cheiro a mofo nos gabinetes dos magistrados e nas secções de processos”. Noutros edifícios do Porto, onde também chove, há celas que “não obedecem ao regulamentado”, observa, acrescentando que a cobertura de amianto das instalações judiciais da Póvoa do Varzim continua por substituir.

Aqui, “devido ao prolongamento das diligências fora das horas de expediente, por diversas vezes pessoas estranhas aos serviços, entram e saem do edifício para saber informações ou utilizar espaços como o WC, porque a porta do edifício se encontra aberta e o átrio sem qualquer vigilância”.

Rodrigues da Cunha não é o único a dar conta de insólitos. Em Braga a sala de audiências do Tribunal do Trabalho serve também para a realização de exames médicos, “por falta de outro local apropriado para o efeito.” Em Anadia, no distrito de Aveiro, chegaram no passado a ter de ser interrompidos julgamentos por as pessoas não aguentarem o frio. O presidente desta comarca, Paulo Brandão, diz que alguns dos tribunais desta comarca se socorrem não só de radiadores a óleo como de escalfetas – aquecedores para os pés – para suportarem os rigores do Inverno que entram portas adentro. Esta nem constitui, porém, a principal preocupação do magistrado, que teme que se um dia o fogo assolar o velho edifício do tribunal de família e menores de Aveiro, cuja sala de audiências é no primeiro andar, quem aí esteja na altura fique encurralado.

A inexistência quase generalizada de pórticos de segurança ou de meros detectores de metais, mesmo em instalações onde trabalham magistrados que investigam criminalidade violenta, constitui outra falha de segurança grave. Paulo Brandão descreve a ocorrência frequente de episódios de agressividade e de violência, “que não poucas vezes acabam por envolver magistrados e funcionários”. Os funcionários de vigilância ou agentes das forças policiais também são considerados insuficientes em várias comarcas.

“É necessária a substituição do sistema de videovigilância [do Palácio da Justiça de Leiria], que se encontra obsoleto e sem proceder à gravação de imagem”, reclama a presidente daquela comarca. No capítulo dos equipamentos, o panorama não fica a dever nada ao das infra-estruturas. Um dos adjectivos que mais povoa os relatórios de actividades é “obsoleto”, e aplica-se tanto a computadores como a impressoras.

“No que diz respeito a impressoras, a situação é de completa ruptura, tendo a maioria atingido há muito o limite da sua vida útil e sendo frequentes as avarias. A sua inoperacionalidade, que normalmente dura alguns dias, acaba por condicionar grandemente a eficiência dos serviços”, refere o relatório da comarca do Porto, que diz também que, como não conta com nenhum programa de gestão de stocks, recursos humanos ou de cadastro de bens, “a tarefa de gestão da comarca, no que a essas matérias diz respeito, dificilmente poderá passar do mero amadorismo, com os sérios riscos e falhas que daí podem advir”.

Algumas das situações assumem contornos quase escatológicos. Évora teve de reportar infiltrações na sede da comarca, “uma no wc da Instância Central Cível e Criminal (esta resultante do esgoto do lavatório) e nos gabinetes da senhora magistrada do Ministério Público Coordenadora, do senhor administrador judiciário e do apoio aos órgãos de gestão (estas provenientes dos tubos de queda, provavelmente entupidos)”. Os tribunais de Paços de Ferreira e de Marco de Canavezes, por seu turno, não estão sequer ligados à rede de saneamento público: funcionam com fossas sépticas.

O Palácio da Justiça de Ponta Delgada teve de ser desinfestado, por causa de uma praga de baratas. O presidente da comarca explica que as condições climatéricas do arquipélago propiciam o fenómeno. Embora o problema pareça ser de dimensões reduzidas, no continente é mais fácil encontrar roedores, em vez destes insectos, a passearem-se por entre a papelada processual.

O presidente da comarca de Beja, que no passado ano judicial teve de se desenvencilhar com apenas 60% dos funcionários judiciais que lhe deviam estar adstritos, afirma ser “altamente pernicioso” que as comarcas estejam dependentes do Ministério da Justiça mesmo para pequenas reparações urgentes de custos insignificantes. Contudo, na comarca-piloto de Sintra, que dá pela designação oficial de Lisboa Oeste, tudo rola sobre rodas, a acreditar no seu administrador judiciário. A experimentar novas formas de funcionamento, a comarca conta com três zeladores residentes, vindos de uma empresa de manutenção. “Primeiro só estava abrangido o Palácio da Justiça de Sintra, mas conseguimos, pagando o mesmo, estender os seus serviços a todos os edifícios da comarca”, orgulha-se este oficial de justiça. “Seremos, provavelmente, uma referência para o resto do país. Sem isto, acho que nem conseguia gerir o tribunal.”

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