Anfíbios: O silêncio dos sapos-parteiros na serra da Estrela é uma péssima notícia

Primeiro foi um fungo que atacou de forma fatal os sapos-parteiros que viviam a mais de 1200 metros de altitude, na serra da Estrela. Agora, os cientistas detectaram um vírus hipervirulento que está a matar esta e outras espécies de anfíbios em charcos e tanques do parque natural.

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Lagoa dos Cântaros, na serra da Estrela, foi um dos locais onde se realizou o estudo Madalena Madeira
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Girino de sapo-parteiro que morreu com ranavirose Gonçalo M. Rosa
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Tritão-marmoreado infectado com ranavirose Gonçalo M. Rosa

Esta é uma história que envolve investigadores, um fungo, um vírus e centenas de anfíbios encontrados mortos na serra da Estrela, e que ainda não tem um final feliz. “No tanque de Folgosinho encontrámos o primeiro sinal de que se estava a passar algo de estranho”, conta ao PÚBLICO Gonçalo M. Rosa, investigador e principal autor do artigo publicado na revista Scientific Reports sobre a ameaça nas águas de charcos e tanques da serra da Estrela. Os cientistas ainda não sabem como eliminar o perigoso vírus, mas sabem que o desaparecimento destas espécies neste ecossistema seria irreparável.

Tudo começa, portanto, num tanque de 255 metros quadrados a cerca de mil metros de altitude, perto de Folgosinho, em Gouveia, na serra da Estrela. “Em 2011, encontrámos aqui 228 tritões-de-ventre-laranja (Lissotriton boscai) adultos durante a época de reprodução [na Primavera] e, em 2014, apenas encontrámos cinco. No mesmo ano, não detectámos um único girino de sapo-parteiro (Alytes obstetricans), versus os 126 contados em 2011”, esclarece o investigador do Centro de Ecologia, Evolução e Alterações Ambientais (cE3c) da Faculdade de Ciências da Universidade de Lisboa e, no Reino Unido, do Instituto Durrell de Conservação e Ecologia da Universidade de Kent e da Sociedade Zoológica de Londres.

O colapso na comunidade de tritões-de-ventre-laranja e tritões-marmoreados (Triturus marmoratus) foi notado no Outono de 2011 numa área que estava a ser monitorizada por causa de um anterior problema com um fungo. Foi nessa altura que se percebeu que estes animais estavam a morrer com sinais óbvios de ranavirose, mostrando hemorragias, úlceras e necroses na pele.

Os testes realizados aos animais mostraram que se tratava de uma nova estirpe de ranavírus. “Os vírus do género Ranavirus encontram-se um pouco por todo o mundo, sendo capazes de infectar vários grupos de animais, desde peixes a répteis e anfíbios. Mas diferentes estirpes têm diferentes graus de virulência, e aquele que circula na serra da Estrela pertence a um grupo hipervirulento chamado CMTV-ranavírus”, explica Gonçalo M. Rosa, num comunicado sobre o estudo, acrescentando que “esta nova estirpe tem sido responsável pela morte anual em massa de várias espécies de anfíbios”.

O trágico episódio do vírus hipervirulento é um segundo capítulo de um problema que começou em 2009 com um alerta sobre um fungo que estava a matar sapos-parteiros na serra da Estrela, roubando o seu inimitável coaxar dos lugares acima dos 1200 metros. Estes anfíbios vivem sobretudo fora de água, escondidos nas rochas, mas na altura da reprodução, quando os girinos estão prestes a sair dos ovos, os machos transportam os ovos (daqui o nome de sapo-parteiro) para os libertar na água. Em 2009, foram encontradas centenas de sapos-parteiros mortos numa das lagoas do parque natural. “As conclusões deste estudo determinaram tratar-se de uma infecção por quitrídio (Batrachochytrium dendrobatidis), um fungo microscópico que afecta as populações de sapo-parteiro. Tratou-se do primeiro caso de declínio de anfíbios em Portugal associado a uma doença. Em poucos anos, o sapo-parteiro desapareceu de quase 70% dos pontos onde habitava [na serra]”, refere o comunicado.

Duas ameaças num sítio

“O estudo referente ao quitrídio-dos-anfíbios foi o começo da história agora publicada, dando origem a uma monitorização da comunidade de anfíbios na serra da Estrela que se mantém até à data. As populações de sapo-parteiro das zonas altas da serra foram fortemente afectadas pelo fungo, registando-se o enorme declínio. Mas tudo piorou, quando uma nova ameaça foi detectada na área. O ranavírus não ajudou de todo a uma recuperação dos sapos-parteiros e, enquanto antes as populações de mais baixa altitude (abaixo dos 1200 metros) estavam de certo modo salvaguardadas, passaram também a estar em perigo”, conta Gonçalo M. Rosa ao PÚBLICO.

Nos gráficos do artigo é fácil de perceber que 2010 foi o ano mais dramático para o sapo-parteiro por causa do quitrídio (sobretudo num tanque junto a Sazes da Beira), mas também se percebe que o fungo (em menor prevalência) continua presente e a infectar estes animais.

Os investigadores encontraram ainda animais infectados com os dois agentes patogénicos. “Encontrámos vários casos de co-infecção por quitrídio e ranavírus, o que torna difícil entender qual dos dois agentes (senão os dois em sinergia) foi responsável pela morte. Há sinais específicos de cada doença, mas muitas vezes não é evidente”.

Até ao Outono de 2011, apesar da presença do quitrídio nesse habitat (que fica abaixo dos tais 1200 metros), não havia registo de mortes em nenhuma das espécies no tanque de Folgosinho. Porém, nessa altura, o colapso aconteceu e o problema alastrou-se. “O ranavírus causou o colapso dessa comunidade, o que foi também observado noutros charcos na serra (por exemplo, na represa da Torre e nos charcos das Salgadeiras). No entanto, o vírus ainda não estava espalhado por toda a área da serra”, refere Gonçalo Rosa.

Entre as vítimas do fungo e do vírus não estão “apenas” tritões e sapos-parteiros. “O vírus não se limitou a causar mortalidade nos sapos-parteiros, sendo virtualmente todas as espécies de anfíbios susceptíveis à ranavirose, que pode conduzir à morte”, diz o investigador. Os declínios de tritões-de-ventre-laranja e sapos-parteiros, nota, estão bem documentados, pois eram duas espécies abundantes na serra da Estrela. “Noutras espécies menos abundantes torna-se mais complexo quantificar o declínio, mas a não observação de indivíduos é um indício de que algo errado se passa.”

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Investigador Gonçalo M. Rosa em trabalho de campo Madalena Madeira

O impacto deste vírus é mais visível nos tritões por serem (por enquanto) mais, mas também porque passam mais tempo na água, expostos a um maior risco de serem infectados por este agente patogénico aquático. “Os sapos-comuns (Bufo spinosus) são essencialmente terrestres, e por isso não ficam tão expostos. No entanto, os seus girinos são encontrados mortos às centenas com ranavirose”, nota Gonçalo Rosa. Também a salamandra-de-pintas-amarelas estará a ser afectada pelo vírus.

Será que estas duas ameaças, o fungo e o vírus, estão, de alguma forma, relacionados? “Até agora, não encontrámos evidências significativas de que a existência de quitrídio num charco estivesse associada à emergência de ranavírus e ao desenvolvimento de ranavirose. No entanto, isto não implica que um indivíduo infectado com quitrídio não seja mais susceptível à ranavirose, pois o seu sistema imunitário já está comprometido. Algo que estamos a investigar.” Os cientistas vão continuar a monitorizar a serra da Estrela e, em laboratório, estão a testar formas para travar o declínio das espécies.

Trata-se de um desafio grave e urgente para a conservação dos anfíbios, avisa o herpetólogo. Actualmente, é possível tratar em laboratório casos de infecção por quitrídio, mas pouco se sabe ainda sobre o grupo de ranavírus encontrado na serra. “Não sabemos como tratar indivíduos com ranavirose nem como mitigar ainda o problema no campo”, alerta.

Porém, no terreno surgem pistas que podem significar “uma pequena luz no fundo do túnel”, adianta Gonçalo Rosa referindo-se a um grupo de charcos onde o vírus foi detectado mas não houve mortalidade.

O trabalho dos investigadores mostra que o famoso quitrídio-dos-anfíbios não é seguramente a única ameaça para as populações de anfíbios. Nem será a pior. “É uma nova realidade ibérica e europeia” que tem de ser encarada, defende o investigador que deixa o alerta: “Este patógeno emergente (ranavírus) revela-se bem mais preocupante e com uma capacidade de afectar comunidades inteiras com maior facilidade.”

E agora?

É preciso, claro, saber mais sobre a ameaça, como este vírus age, como evolui e se adapta a longo prazo e como o derrotar. A prevenção, aconselha o especialista, deve passar por evitar a introdução de espécies dulcícolas não nativas nestes habitats ou uso de certos tipos de isco vivo que podem “dar boleia” a estes agentes patogénicos.

Quanto ao futuro, Gonçalo Rosa parece dividido entre uma pequena esperança e uma boa dose de sobressalto. Por um lado, reconhece que “não é naturalmente vantajoso para um vírus levar à extinção o seu hospedeiro”. Por isso, nota, “é de esperar que, com o passar do tempo, se observe uma atenuação da virulência, uma selecção de hospedeiros mais resistentes, ou mesmo a combinação destes dois cenários”. Mas há sempre um “mas”: “O problema é que se trata de vírus hipervirulento que pode nem sequer dar tempo para que as populações recuperem.”

O que se perde se estas espécies desaparecerem da serra da Estrela? “Apenas” o equilíbrio de um ecossistema único. “Além do valor intrínseco que cada espécie possui, em particular este sapo, que apresenta uma ecologia e comportamento tão singular - em que os machos carregam e cuidam dos ovos até ao momento de eclosão dos girinos -, os anfíbios desempenham um papel essencial no ecossistema, situando-se no meio da cadeia alimentar.” Os anfíbios controlam populações de invertebrados porque se alimentam deles e, ao mesmo tempo, são “uma parte considerável da biomassa num charco e um recurso nutricional para um grande número de espécies, desde peixes a aranhas, insectos, serpentes e aves”. Assim, perder os sapos-parteiros que coaxam no alto do parque natural ou os tritões que nadam nos seus charcos e tanques será perder um pouco da serra da Estrela.     

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