As canções que perderam o festival e venceram o tempo

O Festival da Canção vai ser grande outra vez? A RTP quer, mas não é fácil manobrar um colosso televisivo como este, que vai na 51.ª edição. Enquanto não sabemos se a final deste domingo ficará na memória, passamos em revista os temas que, apesar de terem sido derrotados, ficaram para sempre.

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Os discos com canções do festival coleccionados por fãs do concurso televisivo MARTIM RAMOS/Arquivo

Ouvimos mais de meio século de canções do festival que os portugueses adoram criticar. Tudo para escolhermos 23 que, não tendo conseguido a notoriedade pela vitória, conseguiram sobreviver, entre o culto e a popularidade. Quisemos saber quem são, o que fazem aqui. E acrescentamos um extra por motivos dissonantes de força maior. Nenhuma delas ganhou a passagem para a Eurovisão mas todas sobreviveram. Senhores telespectadores, bem-vindos ao festival dos gloriosos perdedores.   

 

Plural, Teresa Brito (1995)

Não tenham certezas, eu não sou assim

“Começam logo por uma que não é famosa! Não percebem nada disto!” Calma, é certo que o tema é festival e, logo, a diversão é dizer mal. Mas repare-se: quantas canções saídas do show da RTP já terão chegado aos ouvidos dos senhores do festival de cinema de Cannes, para mais na exclusivíssima secção Un Certain Regard? Ora pelo menos esta, em versão singular, fez-se ouvir por ali. Plural é uma das muitas canções que José Cid deu ao festival (entre voz própria e alheia ou participações, serão dezena e meia). Foi cantada por Teresa Brito, irmã de outro guru dos festivais, Tozé Brito, que chegou ao certame por ser finalista de um programa de talentos da RTP. É capaz de lhe ter faltado voz e fortaleza, mas a canção sobreviveu: Paulo Bragança e Cid refizeram-na deste esboço para o álbum Mistério do Fado, onde surge travestida de Imenso – em tom fado e sem tons de festivaleira. Ao cinema e a Cannes, a canção chegou cantada por Fernando Santos no filme Morrer como um homem de João Pedro Rodrigues. A canção esteve perto de ganhar o festival, perdeu por 26 pontos.

Vencedora de 1995: Baunilha e chocolate, Tó Cruz. Plural ficou em terceiro lugar (em oito).

Cai neve em Nova Iorque, José Gonçalo (1988)

Cai neve em Nova Iorque, faz sol no meu país

Uma das mais célebres baladas de José Cid, enviada ao festival na voz do seu sobrinho, talvez demasiado jovem para a carga de saudades do sol de Portugal face ao agreste clima do Inverno nova-iorquino. Cid editou-a logo em single e continua a cantá-la em concertos. A canção tem direito a uma celebridade peculiar graças a uma, digamos, liberdade geopoética na estrofe “Não há mais pôr-do-sol/ Em Sunset Boulevard/ Cai neve em Nova Iorque”. Ora a famosa Sunset Boulevard fica em Los Angeles. Mas se já conhecia esta piada, há defesa para Cid: existe realmente uma – mais desconhecida, é verdade – Sunset Blvd em NYC: fica no Bronx, por acaso a umas 2h45 a pé da 42nd Street, onde logo depois na canção, “alguém me chama e oferece um cigarrinho”. Ao que, muito à Cid e saudavelmente, o cantor responde “muito obrigado amigo não/ Não vou fumar/ Em Lisboa deixei esse caminho”.

Vencedora de 1988: Voltarei, Dora.

Dessas juras que se fazem, Né Ladeiras (1986)

Jura que não vais ter uma aventura

Em 1986, andou meio país a cantar o Porto Covo e o Porto Sentido. Rui Veloso atingia os píncaros com êxitos sucessivos com entrada directa no cancioneiro popular. E foi também ao festival. Bom, pelo menos indirectamente: o seu Jura, com letra de Carlos  Tê, estreou no concurso numa interpretação de Né Ladeiras, cantora de deslumbramentos, a melhor mais subaproveitada cantora portuguesa de sempre. Oiça-se este Jura, já com três décadas em cima, por exemplo. A canção foi logo em seguida gravada, íntima e sedutoramente, por Lara Li, que a fez sua, já só com o título Jura, em 1987, no álbum Quimera – a cantora, por sinal, participou no mesmo festival, mas com Rapidamente, dos trovantes Luís Represas e João Gil. Rui Veloso acabaria por cantá-la também, incluindo-a no álbum Avenidas, de 1998. A canção não chegou à super-final, ficando-se pela meia-final. Não se sabe em que lugar entre as dez concorrentes ficou, já que apenas foram revelados os três finalistas (além do furacão Dora em estreia, os Rimanço com No vapor da madrugada e os Trabalhadores do Comércio com Os tigres de Bengala).

Vencedora de 1986: Não sejas mau pra mim, Dora.

Umbadá, Jorge Fernando (1985)

É umbadá, umbadeó-umbadá. É umbadá, umbadeó-umbadá. É umbadá, umbadeó-umbadá…

Quando Margarida Mercês de Melo anunciou o nome da canção viu-se logo que só podia vir aí coisa boa. Ritmos africanos estilizados, um coro de vozes negras vestidos de amarelo terra, um cantor branco pálido em tons clarinhos e, de repente, o rei leão de cabelo acachapado e voz suave lança o seu grito. É umbadá, umbadeó-umbadá. E pronto, fez-se história. A canção fez carreira e em 2015 voltou em força quando Ricardo Araújo Pereira se lembra de abordar “o que se passou no 22.º festival RTP da canção”, 30 anos antes. “Uma injustiça!” o que se passou com o Umbadá, diria na sua Mixórdia de Temáticas na Rádio Comercial. Foi mesmo lançado um Movimento Umabadá Forever (queremos acreditar que a sua hashtag, #UmbadaNeverForget, irá voltando à vida de vez em quando). Ricardo pediu um protesto de todos os ouvintes junto da RTP e que Umbadá fosse representar Portugal. E foi um viral Umbadá. Jorge Fernando chegaria a manifestar a sua “gratidão” pelo movimento, dizendo que era a prova de que os portugueses não têm “memória curta”. E que raio quer dizer Umbadá? O autor abordou no 5 para a Meia-Noite esse mistério: nem ele próprio sabe.

Vencedora de 1985: Penso em ti (eu sei), Adelaide Ferreira. Umbadá ficou em quarto lugar (em 11).

Vinho do Porto (Vinho de Portugal), Cândida Branca Flor e Carlos Paião (1983)

Vinho do Porto, Vinho de Portugal, e vai à nossa, à nossa beira-mar

Paião já tinha ido ao festival em 80 sem sucesso e em 81 com muito sucesso (Playback, êxito luso que a Eurovisão ignorou: ficou em penúltimo lugar). Cândida já lá tinha passado em 79 e em 82 (por sinal com outra pérola desta lista e também da autoria de Paião). Este Vinho do Porto não deu a vitória à dupla, mas ainda hoje se ouve por todo o lado e não falta quem o use para brindes ao néctar dos deuses do Douro. Que melhor resultado para a canção mais popular e mais propagandística do vinho português mais popular do mundo? Uma canção de alegria por duas jovens estrelas cujas vidas terminaram precocemente e em tragédia: Carlos Paião morreu em 1988 num acidente de automóvel, Cândida Branca Flor com uma mistura fatal de medicamentos e álcool em 2001.

Vencedora de 1983: Esta balada que te dou, Armando Gama. Vinho do Porto (Vinho de Portugal) ficou em quarto lugar (em 12).

A cor do teu baton, Herman José (1983)

Só eu sei, ainda é bom lembrar. Só eu sei, ainda é bom sonhar

O mestre gosta de cantar, isso toda a gente sabe. Raro é o programa em que não dá à voz, inclusive para lembrar esta melodia. No mesmo ano em que fez o favor de dar-nos O Tal Canal, foi tentar a sorte no festival, agora com algo completamente diferente. Foi de romântico empedernido e a sério. Será que o Serafim Saudade alguma vez cantou A cor do teu baton? De António Pinho e Tozé Brito, a canção inclui até um momento sinestético raro: “o teu baton brilhou num som tão à Tom Jobim”. Um pouco mais de sorte com o exigente júri distrital e Herman teria viajado para a Eurovisão, já que ficou a apenas 23 pontos do vencedor (e por coincidência outra camarada d’ O Tal Canal, Helena Isabel, ficou em terceiro).

Vencedora de 1983: Esta balada que te dou, Armando Gama. A cor do teu baton ficou em segundo lugar (em 12).

Trocas e baldrocas, Cândida Branca Flor (1982)

Aiai, são trocas baldrocas, altas engenhocas, que eles sabem inventar

Carlos Paião tinha realmente mão para cantigas simples mas eficazes. Escreveu esta para Cândida, o mais popular êxito da carreira da cantora. Quem é que nunca deu por si a trautear esta lengalenga? E repare-se na letra, básica mas recheada de bons conselhos e avisos às raparigas dos liberais anos 80.  Começa logo por pôr as cartas na mesa: “Se o teu namorado é muito envergonhado e não te abraça, que é demais, toma lá cuidado porque o teu amado pode ser dos tais”. E vê lá se ele não quer trabalhar, se “é fiel”, se não é “muito atrevido” e “se arma em carapau”. “É tudo cantiga! Sabes, rapariga, os homens são assim”. A canção quase venceu: ficou em segundo com 176 pontos, as Doce levaram o prémio com 182.

Vencedora de 1982: Doce, Bem Bom. Trocas e baldrocas ficou em segundo lugar (em 12).

Ali-Babá (Um homem das arábias), Doce (1981)

Alibabá bababali, alibabá bababali, alibabá bababali, alibabá bababali, alibabá babá ba-li babá

Dança do ventre, mil e uma noites, sherazades, loucuras, diabruras, muita pele à vista. Nunca o festival tinha visto tanta pele em palco, um escândalo. Já não era a primeira vez que o quarteto fantástico ia ao certame mas agora resplandecia em pele, prateados e dourados. No ano anterior, um pouco mais veladas, as Doce tinham perdido para Cid, agora perdiam para Paião. O júri distrital torceu o nariz, mas este Ali-Babá tornou-se uma gruta de tesouros para Lena Coelho, Laura Diogo, Fátima Padinha e Teresa Miguel. Vendeu como pãezinhos quentes e ainda hoje se dança em muita festa. A obra é de Pedro e Tozé Brito. “Fui a tua serpente tão enfeitiçada, com música mágica na tua flauta encantada”. Logo, “abre-te sésamo, cessa-me o castigo”. Repetir refrão.

Vencedora de 1981: Playback, Carlos Paião. Ali-Babá (Um homem das arábias) ficou em quarto (em 12).

Morrer de amor por ti, José Cid (1981)

A morrer de amor, é bem melhor do que viver sem ti

Uma balada que parece prolongar-se na repetição desta persistente morte em vida mas que dura apenas três minutos. Mais um sucesso imaculado de Cid, com pré-estreia no festival, onde só foi derrotada pelo Playback. Voz angelical a abrir, lamento ao piano e um crescendo épico comme il faut com Cid a aproveitar toda a extensão vocal que alcança. A canção é dirigida a quem o deixou de coração partido e que quando conheceu ainda era uma criança. E eis a prova da lei de Cid que estipula que nada se perde, tudo se canta: “Nem sequer sonhavas que poderias ser/ a causa principal desta canção”.

Vencedora de 1981: Playback, Carlos Paião. Morrer de amor por ti ficou em segundo (em 12).

Doce, Doce (1980)

É tão doce ouvir ao cair da tarde a porta a abrir. E ao sentir-te entrar, correr para ti p'ra te abraçar

Saídos da longa noite negra do fascismo, após os conturbados anos finais da década de 70, estaríamos preparados para as poderosas Doce? Produção com o dedo de Tozé Brito, armadas de visual atrevido e harmonias abbadas, as Doce entram de rompante em colorida explosão disco num festival e país habituados à contrição física. Esculturais e sexuais, coreografadas e decotadas, as Doce aproveitam todas as lantejoulas que podem para a estreia das emissões televisivas a cores – precisamente com este festival – para mostrarem que os tempos mudaram. Bem-vindos aos anos 80, show total. Tirando Cid, a diva Simone e pouco mais, as Doce foram o projecto que melhor soube utilizar o festival para fazer carreira (curta mas proveitosa). Polémicas sim (e sê-lo-iam ainda mais), mas com efeito furacão e só por culpa do Cid não foram à Eurovisão.

Vencedora de 1980: Um grande grande amor, José Cid. Doce ficou em segundo (em nove).

Zé brasileiro, português de Braga, Alexandra (1979)

Zé brasileiro português de braga, sacola no medo e o navio aos pés

António Sala e Vasco de Lima Couto assinam este êxito orelhudo de Alexandra sobre um jovem emigrante que “foge para longe das saias da mãe” e logo para “Copacabana e outras avenidas”. Nem se usa a palavra saudade, o que é meritoso já que é inerente a toda esta canção-refrão. Tem dois minutos e 48 segundos mas nunca mais sai da cabeça, tanto que o seu título genial firmou-se com a força de uma expressão que culmina na perfeição no verso final: “Zé brasileiro português de Braga, português do mundo”. Sorte do Zé carioca português no festival: nenhuma – num ano em que houve três meias-finais (27 canções…), Alexandra foi eliminada na segunda, não tendo chegado a competir com a grande vencedora do ano. À frente de Alexandra, canções tão ou tão pouco lembradas como Cantemos até ser dia por Teresa Silva Carvalho, Eu só quero por Gabriela Schaaf ou Novo canto português por Tozé Brito.

Vencedora de 1979: Sobe sobe, balão sobe, Manuela Bravo. Zé brasileiro, português de Braga ficou em quarto (em nove, na segunda das três meias-finais).

O circo e a cidade, Gemini (1978)

Olha, o circo chegou à cidade, a tristeza foi adiada, o riso do palhaço, o lançador do laço, as feras amestradas

Tozé Brito somava e seguia. Aqui, com Mike Sergeant, Teresa Miguel e Isabel Ferrão, pontuava nos Gemini, que tiveram um par de anos com sucessos, incluindo esta variação circense cuja linha “o circo chegou à cidade” se tornou uma expressão corrente. Canção de João Henrique e Fernando Guerra (dois autores recorrentes nos festivais), parecia não estar fadada a grandes voos mas algo há por ali que lhe tem dado anos de vida. “A cidade quando está cansada precisa sangue novo que a tire da maçada”. Era 1978, o país “precisa de alegria”, o FMI acabava de chegar, íamos chegar à CEE… Ficou no top 3 do ano festivaleiro, logo atrás de Cid. Os Gemini, aliás, foram derrotados pelos… Gemini (nesse ano só estes músicos e a Tonicha participaram, cada um com quatro canções).

Vencedora de 1978: Dai-li, dai-li dou, Gemini. O circo e a cidade ficou em terceiro (em 12).

Estrela da tarde, Carlos do Carmo (1976)

Era a tarde mais longa de todas as tardes que me acontecia 

A edição de 1976 é única, tanto em modelo como em qualidade, se bem que não em diversidade. Depois do primeiro festival pós-Revolução, em 1975 (um radical festival de intervenção como nunca mais se viu – “Reforma agrária faremos” e “Abaixo o imperialismo” intervinham José Mário Branco e o GAC em Alerta!; “Anda aí como aliás já se previa a cia” e “É a boca do lobo a morder a nuca do povo” escrevia Sérgio Godinho e cantava Carlos Cavalheiro), o concurso muda de figurino: a voz está escolhida, só faltam as canções a serem votadas (por um então inédito método democrático popular, o voto por cupão publicado na imprensa). Carlos do Carmo é A Voz e o festival é um concerto do cantor. Tordo, Paulo de Carvalho, Joaquim Pessoa, Ary dos Santos, Tinoco, Tozé Brito, Carlos Mendes, Niza, Alegre – todos assinam belas canções para o astro e escolher entre as oito é uma tarefa difícil (frase obrigatória para qualquer jurado festivaleiro). Ainda assim, o júri pouco democrático desta lista escolheu as que se seguem, encabeçadas por esta estrelíssima Estrela da tarde, clássico de Tordo e Ary – que no espectáculo declama a meio da canção. Tem sido cantada ao longo dos anos por outras vozes (mais recentemente Mafalda Arnauth, Liana ou Ana Bacalhau). “Meu amor, meu amor/ Minha estrela da tarde/ Que o luar te amanheça e o meu corpo te guarde”.

Vencedora de 1976: Flor de Verde Pinho, Carlos do Carmo. Estrela da tarde ficou em sexto (em 12).

Novo fado alegre, Carlos do Carmo (1976)

Amigo, abre também a tua voz e vem comigo. Não cantaremos nunca mais o fado antigo

Outra obra de Fernando Tordo e Ary dos Santos. No espectáculo, Tordo canta o tema com Carlos do Carmo. A letra é clara como água, canto aos novos tempos de liberdade e esperança. “Agora, em cada verso há um homem que não chora/ E o futuro é o sítio onde se mora”.

Vencedora de 1976: Flor de Verde Pinho, Carlos do Carmo. Novo fado alegre ficou em segundo lugar (em 12).

No teu poema, Carlos do Carmo (1976)

No teu poema existe um verso em branco e sem medida

Uma das belas canções de José Luís Tinoco, também um poema onde se respira o espírito do seu tempo, um poema para um país, onde “existe a esperança acesa atrás do muro” e “um verso em branco à espera de futuro”. Já teve muitas vozes, de Simone a versões recentes, tanto em tom tradicional e à guitarra com Mafalda Arnauth como modernita em balada eléctrica pelos Amor Electro.

Vencedora de 1976: Flor de Verde Pinho, Carlos do Carmo. No teu poema ficou em terceiro lugar (em 12).

A rosa que te dei, José Cid (1974)

E a rosa que te dei não foi criada num jardim, por isso tinha mais significado para mim

Este velho êxito de Cid tem uma “história sui generis”, como se conta na sua biografia autorizada lançada em 2015. Diz-se aí que “a música e a letra” foram escritas para Amália. “Mas a fadista, segundo o autor, nunca a quis gravar”. Parece que a teve “dois anos numa gaveta”, até que, face à desdita, decidiu gravá-la sem dar cavaco à rainha. Mas antes, claro, levou A Rosa ao festival (cujo regulamento ordena que a canção seja inédita e nunca tenha sido apresentada antes). Histórias à parte, sabendo-se da paixão da fadista-mor por flores (especialmente as campestres), talvez seja por isso que nesta canção há um “quarto andar de uma velha mansarda, que tinha, junto à janela, sobre o beiral, uma roseira brava”. E, lá está, “a rosa que te dei / não foi criada num jardim / por isso tinha mais significado para mim”. Amália ignorou, o festival da RTP também e passou-lhe ao lado em nome de uma força maior e unânime, aquela que seria a senha da Revolução.

Vencedora de 1974: E depois do adeus, Paulo de Carvalho. A rosa que te dei ficou em quinto (em dez).

No dia em que o rei fez anos, Green Windows (1974)

No dia em que o rei fez anos, houve arraial e foguetes no ar

Aqui chegados, já nos soa que Cid é o rei do festival. A sua eficiência em estrear ali canções para depois as reutilizar é evidente. Este clássico é da sua autoria, chegou ao concurso pelo grupo Green Windows, formado por elementos do lendário Quarteto 1111, liderado pelo cantor. É uma das suas muitas canções em que mostra a verve monárquica. Até porque José Albano Salter Cid de Ferreira Tavares, se vivêssemos em monarquia, “seria, por direito, barão do Cruzeiro e visconde de Lagos”, lê-se no seu livro. Agora imagine-se que em 1974, esta canção, que ficou em segundo, tinha vencido o festival. Teríamos uma senha da Revolução com o refrão “No dia em que o rei fez anos/ Houve arraial e foguetes no ar/ O vinho correu à farta/ E a fanfarra não parou de tocar”. Por outro lado, haveria uma quadra com uma fulgurante coincidência: “E veio a gente da gleba/ Mais a gente que vivia do mar/ Para enfeitar a cidade/ E abrir-lhe as portas de par em par”. E um profético “Lá vai rei morto rei posto/ Levado em ombros p'la grei”.

Vencedora de 1974: E depois do adeus, Paulo de Carvalho. No dia em que o rei fez anos ficou em segundo (em dez).

Cavalo à solta, Fernando Tordo (1971)

Minha laranja amarga e doce, meu poema feito de gomos de saudade

Uma canção vertiginosa da dupla Fernando Tordo e Ary dos Santos que um jovem Tordo, então com 22 anos, cavalga magistralmente e com uma segurança corajosa, como se estivesse a “correr contra a ternura”. Soa a um grito visceral de paixão mas há ali algo mais. Oiça-se: “Minha réstia de luz intensa, de voz aberta/ Minha denúncia do que pensa/ Do que sente a gente certa”. Este Cavalo à Solta seria um prenúncio da força que levaria a que Tordo vencesse o festival com Tourada, em 1973, uma bandarilha no lombo da ditadura.

Vencedora de 1971: Menina do alto da serra, Tonicha. Cavalo à solta ficou em terceiro lugar (em nove).

Flor Sem Tempo, Paulo de Carvalho (1971)

Canta o sol que tens na alma, és a flor de ser feliz

O potentado Paulo Carvalho transforma uma cantiga aparentemente singela numa canção marcante, que continua a ser cantada e com direito a versões várias – recentemente, dançável pelos Movimento, jazzy por Paula Oliveira e Bernardo Moreira ou balada clássica e lírica por Anabela e Carlos Guilherme. Uma canção, de José Calvário e José Sottomayor, que seria incluída no primeiro álbum a solo do cantor.

Vencedora de 1971: Menina do alto da serra, Tonicha. Flor sem Tempo ficou em segundo (em nove).

Canção de Madrugar, Hugo Maia Loureiro (1970)

De linho te vesti, de nardos te enfeitei

Era um festival só para consumo interno (Portugal e outros países boicotaram nesse ano o eurofestival por discordarem do sistema de votação). Ainda assim, dois mestres e autores de muitos temas de festivais, Nuno Nazareth Fernandes e Ary dos Santos, estrearam aqui uma canção à beira do precipício e que, nesta versão, parece andar à procura de voz (havia de encontrar muitas). Poema Ary puro, vai num crescendo espiralizando metáforas, transcendente de certezas revolucionárias: “Sei meu amor inventado que um dia/ Teu corpo há-de acender/ Uma fogueira de sol e de fúria/ Que nos verá nascer”. A estrofe final, que começa por um “Então nem choros, nem medos, nem uivos, nem gritos”, é de uma exigência à prova de fôlego (e pelos vistos à prova da censura do regime). Já a ouvimos por Carlos do Carmo ou Simone, recentemente por Susana Félix ou por Fábia Rebordão.

Vencedora de 1970: Onde vais rio que eu canto, Sérgio Borges. Canção de Madrugar ficou em segundo lugar (em dez).

Corre Nina, Paulo de Carvalho (1970)

Corre nina, menina prendada, p'ra quem do nada lá vem

Fado, intervenção, pop, rock, jazz, folck. A carreira, canções e a própria voz de Paulo de Carvalho são um manancial de influências e culturas musicais. Aos 22 anos, em início de carreira, Paulo já mostra o seu potencial com quase toda essa mescla. E com uma segurança que o tornará, ao longo de meio século, uma coerente voz de referência. Num tempo em que em Portugal “só havia dois tipos de música: aquela que se mostrava e a outra que era escondida, o Zeca, o Adriano, e todos os outros que se vendiam por debaixo do balcão”, só havia uma “alternativa”. Adivinhe. Sim, era o Festival da Canção. Em 2002, dizia ao PÚBLICO que concorreu também “por ingenuidade” mas porque também “era assim que as coisas se faziam”: “o Festival da RTP era a única coisa importante neste país nessa altura. Quem queria mostrar-se, ou mostrar o seu trabalho, tinha que passar por ali. Quem não estava no sistema – vamos falar do Adriano Correia de Oliveira ou do José Afonso – era silenciado e os seus discos não existiam.” E, assim, corre Paulo. “Não me arrependo nada. O caminho era aquele, se bem que as coisas tenham sido feitas com ingenuidade – mas também com amor. Provavelmente muitos de nós foram utilizados por ausência de consciência política. Cantávamos coisas que, nas entrelinhas, eram contra o regime da altura, mesmo que não tenhamos percebido o que se estava a passar.” Ainda assim, o rapaz teve o seu momento de contestação possível e visível: a farpela. “Na primeira vez que fui ao Festival da Canção, Melo Pereira, o organizador, disse-me para não me esquecer do smoking. Foi o bastante para não o fazer. Portanto, fato normal, camisa aberta. Era essa a contestação.”

Vencedora de 1970: Onde vais rio que eu canto, Sérgio Borges. Corre Nina ficou em quarto (em dez).

Balada para D. Inês, José Cid (1968)

Para acabar de vez com o Cid, eis a primeira participação de sempre do cantor que passaria meio século a entrar no festival de todas as formas e feitios. Então com 26 anos, canta a balada de D. Inês, um trágico amor que passaria ainda pela tragédia de ser incluído em muitas outras canções ao longo do historial do festival. Mas no certame nunca mais cantaram Pedro e Inês de forma tão elegante como aqui. Mestre Cid foi acompanhado pelos membros do Quarteto 1111.

Vencedora de 1968: Verão, Carlos Mendes. Balada para D. Inês ficou em terceiro (em dez).

Olhos nos olhos, Simone de Oliveira (1964)

Que sinto em mim, que vejo em ti, olhos nos olhos

A Senhora Festival entrou logo na primeira edição de sempre do concurso (e venceu logo a segunda com Sol de Inverno, a Desfolhada só chegaria em 69). Ainda faltariam muitas das canções viscerais ou de intervenção de que faria a sua carreira, muitas canções levadas ao festival (a última em 2015!), mas esta balada tem os contornos de um clássico do cançonetismo e tem sido cantada e revista de vez em quando ao longo das décadas. Aos 26 anos, Simone dá a sua voz candente e poderosa a uma interpretação suavemente enlevada deste tema romântico de Carlos Canelhas e António Antão. Hoje em dia, a voz, claro, já não é a mesma. Mas Simone, 60 anos de carreira em 2017, não mudou. Continua a cantar, olhos nos olhos, com a mesma autenticidade dos seus vinte anos. Aprendam, jovens noviços dos festivais.

Vencedora de 1964: Oração, António Calvário. Olhos nos olhos ficou em terceiro (em 12).

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