Os cinco caminhos de Jean-Claude Juncker

O Tratado Orçamental Europeu, pela sua sensibilidade e complexidade, só poderá ser devidamente abordado num contexto novo e marcado pela superação de muitas das ambiguidades hoje instaladas na discussão política europeia.

A menos de três semanas da celebração do sexagésimo aniversário do Tratado de Roma, a União Europeia vive num verdadeiro estado de suspensão, à espera das eleições que este ano decorrerão em França e na Alemanha. Interpretando bem o espírito do momento, Jean-Claude Juncker optou por elaborar um Livro Branco sobre o futuro da Europa em que a componente interrogativa prevalece sobre a propositiva. O presidente da Comissão Europeia, num tom algo desanimado, enunciou cinco caminhos possíveis para o futuro deste projecto político, que vão desde o recuo para a simples regulação do mercado único até às opções de cariz marcadamente federalista. O tempo que atravessamos, sendo pouco propício à tomada de decisões com carácter definitivo, apela a uma reflexão multifacetada sobre a Europa e os seus hipotéticos destinos.

Não é por acaso que nos encontramos tão dependentes dos resultados das eleições francesas e alemãs. O chamado eixo franco-alemão representa um alicerce imprescindível à edificação e sustentação de um projecto político europeu bem sucedido. Foi assim no passado e não há qualquer razão para pensar que não continuará a sê-lo no futuro. Por isso mesmo, valerá a pena lançar um olhar para o que aproxima e afasta estes dois países num sector tão decisivo como é o da política económica, orçamental e monetária.

Uma análise desta natureza não pode deixar de nos remeter para as singularidades históricas e culturais que identificam cada uma destas nações, e que se repercutem directamente nas respectivas concepções da União Europeia. Para a Alemanha, ainda fortemente influenciada pelo pensamento ordoliberal, que marcou decisivamente todo o período do relançamento no pós-guerra, as instâncias europeias devem desempenhar fundamentalmente funções de regulamentação económica e monetária, e de gestão de regras comuns no amplo mercado interno. Já a França, fiel à sua tradição colbertista, tende a projectar nas instituições europeias um modelo de Estado interventor e produtor de verdadeiras políticas económicas, que vão muito para além da dimensão regulatória.

O conceito de economia social de mercado, hoje tão abundantemente usado e reclamado por famílias políticas de orientação bem diversa, na verdade provém do ordoliberalismo alemão. Esta corrente de pensamento associa o enaltecimento do liberalismo económico com a apologia de uma certa ordem social e política baseada no sentido da responsabilidade cívica do indivíduo e na promoção da concertação de interesses, sem recurso à intervenção directa do Estado, e na permanente preocupação com a remoção de obstáculos à livre concorrência, como aqueles que os monopólios e os oligopólios constituem. Daí resultou uma economia com uma fortíssima capacidade exportadora, estruturada em torno de uma rede de PME [pequena e m´dias empresas] com enorme potencial inovador e em grande parte assente numa ampla concertação social obtida pela via do diálogo directo entre as entidades patronais e o mundo sindical. Se acrescentarmos a isto a má recordação da hiperinflação ocorrida no período entre guerras e a memória traumática do intervencionismo estatal associado ao período do nazismo, temos a explicação para o comportamento mais recente dos governos alemães em matéria de política económica.

Não terá sido por acaso que foi um chanceler social-democrata, Gerhard Schröder, a tomar algumas das decisões aparentemente mais liberalizantes, na sequência do complexo processo de reunificação alemã, de modo a garantir o aumento da competitividade externa das empresas germânicas e a superação do gravíssimo problema de desemprego que então assolava o país. Não será pois de espantar que os alemães revelem algum temor perante a ideia de uma governação económica europeia que só em parte poderiam controlar.

Numa perspectiva francesa as coisas colocam-se de forma completamente diferente. A tradição política e económica deste país aponta para a valorização do papel orientador do Estado e para a necessidade de promoção de políticas públicas activas susceptíveis de garantirem o crescimento económico, a criação de emprego e a sustentação de um Estado-Providência actuante. Contrariamente à Alemanha, a França tem revelado historicamente conviver bem com sucessivas situações de desequilíbrio orçamental e continua a cultivar a nostalgia de uma subordinação quase completa da economia à política. Daí resulta uma visão da Europa bastante diferente daquela que prevalece do outro lado do Reno.

A questão que agora se coloca é a de saber se estas duas abordagens alicerçadas em histórias e culturas diferentes podem ou não entender-se e originar um novo impulso no processo político europeu. Para que isso suceda ambos os países têm de fazer algumas concessões. A Alemanha terá de reconhecer a necessidade de contribuir mais intensamente para o relançamento económico europeu, percebendo, desde logo, o quanto este é essencial para o seu próprio futuro. Isso obrigará a uma maior disponibilidade para a partilha dos riscos associados às dívidas soberanas de cada Estado-membro da União Europeia e a uma predisposição para o alargamento do seu mercado interno, seja por via de políticas de incentivo à procura ou de promoção do investimento público. No caso da França haverá que reconhecer a inevitabilidade de uma maior partilha de soberania, com reflexos imediatos no plano orçamental, por muito que isso colida com a sua cultura e história recentes.

Só a partir daqui será possível iniciar uma discussão útil sobre um tema que não pode ser objecto de tratamento dogmático e que tem que ver com as regras constantes do chamado Tratado Orçamental Europeu. Este assunto, pela sua sensibilidade e complexidade, só poderá ser devidamente abordado num contexto novo e marcado pela superação de muitas das ambiguidades hoje instaladas na discussão política europeia.

É claro que a União Europeia não se reduz a esta questão franco-alemã e nenhum país deve abdicar do direito de participar activamente nas discussões em curso. Se hoje enfatizei este tema foi apenas por ele ser de primordial importância.  

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