O universal é o local sem paredes

KSX2016 integrou muitas listas de 2016 e é agora reeditado pela Meifumado. Parte do drama de uma geração forçada a emigrar para falar sobre as vitórias e derrotas de todos nós. Keso está com os dois pés no Porto e realizou um videoclip que fala sobre o lado afectivo da força de gravidade.

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Nelson Garrido

Quando perguntámos a Keso se preferia fazer a entrevista no bairro ou noutro espaço, aludindo ao facto de ele carregar uma aura simultaneamente local, bairrista, mas também cosmopolita, experimentada, a resposta veio como muitos dos versos desse excelente álbum — KSX16, de 2016 — que numerosas publicações acolheram nas listas do ano. Semi-velada, semi-enigmática, em todo o caso curiosa: “Não consigo pensar nesse ponto de vista. Mas o bairro é importante”.

“O universal é o local sem paredes”, escreveu Miguel Torga no seu Diário, sentença emitida a partir de um espaço que, mais do que físico, era mental: Trás-os-Montes, nesse “para lá” — dos montes, horizontes, certezas. — radicando, precisamente, a ideia de um olhar curioso, multidimensional, ou, reflexamente, de uma clausura “local” apenas na aparência (“Psicologicamente, nenhum [transmontano] é murado. Daí que reajam e actuem como filhos do mundo em todas as circunstâncias”, escreveu Torga). Ou seja, todo um modo de existir diametralmente oposto à intolerância “mural” que, de Trump à crise dos refugiados, parece estar novamente a ser erguida. O “local” de Keso é o Bairro de Vilar, aglomerado habitacional construído em finais do século XIX para as classes trabalhadoras, vindo, no pós-25 de Abril e já depois de demolido, a ser reconstruído. É de Vilar que se pode avistar o mundo, o “universal”, através daquele que é, desde ancestrais tempos, o caudal que tudo leva e tudo traz: o rio (Douro). Vilar, como Trás-os-Montes em Torga, é, para Keso, esse porto de abrigo, local de amor e aconchego, mas simultaneamente posto de observação para o mundo, o tal que não cabe em muros, códigos ou convenções, os mesmos que o rapper dinamita nas suas letras poéticas, insurrectas, subversivas, no cariz exploratório da sua sonoridade ou, ainda, no modo criativo como utiliza o instrumento vocal (o rap, o canto, a declamação ou a palavra falada a conviverem livremente).

Em Raios Te Partam, álbum lançado em 2003 com apenas 16 anos, registo cheio de fome e potência juvenil (tal como o Entre(tanto) de Sam The Kid, é um disco de produção caseira, solitariamente arquitectado por um miúdo branco, urbano e residente num bairro social), Keso assinava uma canção chamada Bairrismundo, título que, na sua justaposição semântica, ilustra precisamente essa mundividência dual, compósita, complexa. Se, historicamente, o hip-hop — quer na vertente musical (o rap), quer na visual (o graffiti) — sempre teve uma dimensão profundamente territorial, de exaltação de uma identidade local (a rua, o bairro, a zona), Keso nunca foi, na verdade, homem de uma rua só. Por isso é que as suas letras, como as dos melhores cantautores, radicando em experiências pessoais, do quotidiano, comezinhas por vezes, transcendem o seu círculo e falam para o mundo, sobre o mundo, ou seja, falam sobre nós.

O som, a imagem

Em 2005, entrou na Escola Superior de Teatro e Cinema, onde partilhou a sala de aula com gente como João Salaviza ou Salomé Lamas. Tendo-se especializado em sonoplastia, não chegou, contudo, a concluir a formação, estando agora a pensar em reingressar, até porque, diz, teve “professores maravilhosos, como o João Maria Mendes, o João Lopes, o Luís Falcão, o Sá Gouveia. Depois há outros, os tecnicistas, que não olham para as coisas como objectos artísticos”. Pelo meio da estada em Lisboa, assinou uma obra-prima de título delicioso, O Revólver Entre As Flores (2012), cuja faixa inicial, Belarmino de volta ao ringue, citando o Belarmino (1964) de Fernando Lopes, filme disruptivo e percursor do Novo Cinema português — embora se oiça, no início da canção, um diálogo samplado com Vasco Santana, figura de um cinema no extremo oposto daqueloutro -, é bem ilustrativa da latência cinematográfica (e cinéfila) da sua música.

Não por acaso, é com KSX2016, álbum lançado pela Biruta Records que é precisamente hoje (3 de Fevereiro) reeditado com o selo de uma editora maior, a Meifumado, que Keso se atira, pela primeiríssima vez, à câmara para realizar (e interpretar) um videoclip (BruceGrove), deste modo prolongando, no capítulo visual, o carácter profundamente autoral (e perfeccionista) da sua música. “Eu quero olhar para isto como o início do meu trabalho na realização, sempre quis contar histórias e fazer filmes”, revela, ao mesmo tempo que cita Jarmusch e Shyamalan como alguns dos seus cineastas predilectos. Para isso, teve de perder o medo de criar um videoclip medíocre ou indiferenciado no tempo da sua absoluta banalização (por várias vezes se lhe refere como “o filme”): “Vivemos numa fase em que se olha para a música como um produto que também é visual. Os miúdos que estão a começar agora já não querem fazer uma música, querem um videoclip!”. Talvez seja por isso que o MPC, a máquina com que produziu KSX2016, apareça na capa fotografado como um “fóssil”, não no sentido, ressalva, “de ser uma coisa que já não se usa, mas no de olhar para um método anterior, que era o de fazer música sem a ver. Não há monitores, não há waves ou formas. É feeling puro, é uma forma muito diferente de trabalhar”.

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Nelson Garrido

Tal como na primeira edição, O Medo, última e descomunal canção do álbum, continuará ausente das plataformas digitais, apenas se podendo ouvir na edição física (espécie de uma anacrónica bonus track), gesto que traduz a convicção do músico no conceito de álbum e, sobretudo, tentativa de resgatar um certo tipo de ouvinte, esse capaz de se desligar da aceleração contemporânea (“’O medo é o maior segredo que a velocidade esconde’, foi um dos pensamentos com mais piada que encontrei no Gonçalo M. Tavares”, anota) e sentar-se a apreciar um disco do princípio ao fim. “É uma espécie de beijinho na testa [a bonus track] a quem compra o disco. Eu continuo a dar valor ao objecto físico, basta ver a minha colecção de rap português. O Medo é só meia faixa, falta a outra metade. A canção tem cinco tempos diferentes, os que estão no disco são o primeiro e o segundo tempo. Os outros três vão estar na primeira faixa do próximo disco”. KSX2016 chegou depois de um interregno de 4 anos e de alguns momentos emocionais difíceis, sobretudo na passagem por Londres com a qual o álbum pungentemente se inicia, período que o músico quis assumidamente trazer para o videoclip de BruceGrove: “Quando escrevi a canção, estava a pensar nas imagens [de Londres] como elas são, e foram essas que eu tentei recolher. Daí ter assumido a linguagem do filme como, digamos, ‘documental’. Há um tipo que sai de casa no final do dia de trabalho e, como não sabe para onde ir, vai assistir a tudo o que acontece enquanto se embriaga.

Fica triste como todas as noites, porque percebe que aquele é o fundamento da vida na metrópole, que ela te reduz as possibilidades de vida. Tu viras um ratinho numa maquete, andas ali dentro e tens que ser feliz com dinheiro, alimentares-te, trabalhar... It’s all about the money! Não é, definitivamente, o sítio onde queres viver”. O videoclip de BruceGrove, buliçosa estação de comboios de Tottenham, é o fechar de um ciclo, a cicatrização de feridas de um período emigrado, o “ajustar de contas” com uma experiência dolorosa de desenraizamento e solidão — “Se me vês a acenar a mano / Diz ao meu pai que eu o amo, diz à minha mãe que eu a amo / Se me vês a acenar a mano / Diz ao Porto que eu o amo, diz ao meu país que eu o amo”, ouvimos enquanto Keso, de gorro na cabeça e saco de plástico para o álcool na mão, acena para as câmaras do CCTV que asseguram essa permanente — e crescentemente aceite — vigilância das sociedades actuais. “É tudo assumidamente filmado de câmara à mão, vou aos locais de que falo e tento reencontrar as situações e os sentimentos de quando eu lá estava. É quase um registo «antropológico», no sentido em que é ‘o que está ali’: as pessoas, a cidade, os edifícios como eles são.

Eu escolhi esta abordagem precisamente para contrastar com o texto. Se o texto fosse claro, terra-a-terra, eu teria optado por uma composição visual mais poética ou abstracta”, explica (a este registo “naturalista” do videoclip não será alheio o gosto que diz ter pelo movimento Dogma 95 de Von Trier e Vinterberg). Existe aquele incompreensível cliché de que “nunca devemos voltar aos lugares onde fomos felizes” — então devemos voltar a quais.? Àqueles onde não fomos felizes? No caso de Keso, foi mesmo isso que aconteceu: o músico decidiu, num gesto de visceral coragem, voltar a Londres e filmá-la, documentá-la, imortalizá-la em toda a sua imperfeição: eu estive aqui, eu passei por isto, isto (também) faz parte de mim. Há neste movimento, neste (eterno) retorno “ao lugar do crime” (mental, mais do que físico), algo de redentor, demanda por um apaziguamento interior que se materializa num dos impressionantes planos finais, no qual se vê Keso, ao cabo de uma descoroçoada e errante noite, estendido no chão na companhia de uma lata de cerveja. Keso está morto (uma parte dele morreu, ficou lá em Londres) e, simultaneamente, não está; essa morte é, novamente, mais espiritual do que física, uma “morte da alma” que tão bem joga com as palavras que se ouvem (“E no matadouro das almas que entope o tráfico / De que vale o esforço de uma sirene se ela só vai socorrer um corpo?)”. Mas talvez não existam palavras mais justas para esta imagem de um homem tombado pela solidão e a incomunicação do que aquelas que Napoleão Mira (pai de Sam The Kid) declamou no lindíssimo poema Slides (Retratos da cidade branca) (álbum Pratica(mente), 2006): “Paga-se a saudade com cartão de crédito / Táxi, leva-me para onde está o meu amor / Táxi, leva-me para lá de mim / Táxi, atropela-me os sentidos e a alma para não deixar vestígios”.

Mudam-se os sons, mudam-se as cidades

Desde o lançamento do álbum e a aclamação que se lhe seguiu, o Original Marginal, como se auto-intitula, tem andado ocupado entre a residência radiofónica na recém-lançada SBSR.FM e vários concertos, inclusivamente no Brasil, onde foi um dos convidados portugueses do Festival Terra do Rap (que congrega rappers de língua portuguesa de vários países). Uma voz que sempre fez gala de ser “marginal”, “alternativa”, a fazer rádio num tempo em que o hip-hop é a música mais escutada no mundo e, até, ruído de fundo — e ser “ruído” é o primeiro passo para a irrelevância. — de discotecas, shoppings, festivais? Num tempo, enfim, em que o hip-hop é a “nova pop” (paradigmático o modo como, ainda recentemente, Drake se lamentou por ter recebido o Grammy por Hotline Bling na modalidade de melhor canção hip-hop e não pop)? Keso é pragmático: “Passo as novidades que saem, mediante se a linguagem é adequada para uma estação generalista. Não falo do conteúdo; se o conteúdo for inadequado por questões morais ou políticas, eu passo na mesma. Estou a falar das próprias palavras que são utilizadas”.

E o fenómeno da palavra é, justamente, uma das pontas mais interessantes da massificação actual do hip-hop e da transformação cultural que ela trouxe, no sentido em que o palavreado e a postura dos rappers, outrora vistos como moralmente “obscenos”, são hoje exaltados como lifestyle nas redes sociais por miúdos (e adultos!) dos bairros mais degradados aos condomínios mais exclusivos. “Podes olhar para isso como um cartaz da Intimissimi. Não era normal ter numa paragem de autocarro o cartaz de uma moça de pernas abertas com um bikini super sensual. O sexo é o que mais vende. O rap não era um género que expunhas nessa paragem de autocarro, mas, de repente, passou a ter uma linguagem altamente comercial, altamente apelativa ao sexo, e aí passa a ocupar essa paragem! A partir desse momento, há um crescendo de procura e de oferta. São fenómenos alheios ao que é o rap, porque o rap, independentemente de  ter nascido como música de festa, nasceu também como mensagem de cariz social. Mas hoje há quem não o faça e use a mesma linguagem! O rap, neste momento, é um cartaz da Intimissimi: é comercial, um produto de imagem. Mas há quem continue a criar à margem disso: os A Tribe Called Quest não fazem isso, eu não vou fazer isso”.

Os próximos concertos são já em Março, dia 9 em Lisboa (Music Box) e 18 no Porto (Plano B), e nos quais o formato DJ e MC — disposição clássica no hip-hop, se bem que o formato banda seja, actualmente, dos The Roots aos BadBadNotGood, absolutamente comum — se manterá, apesar da inusitada experiência com os Oliveira Trio, banda rockabilly que o acompanhou no último Vodafone Mexefest. KSX2016 tem tanto de introspectivo e de gravidade como de humor, acidez e sarcasmo, marca ecléctica que sempre correu no ADN de Keso. “Escritor de interiores” — que cita a sua canção Pintor de interiores, clássico do rap português — é um dos melhores exemplos dessa dimensão mordaz e cáustica, nas entrelinhas se lendo, porém, uma aguçada crítica à recente transformação urbana do Porto. “Como tudo o que é em demasia, as coisas acabam por tornar-se plásticas e fugazes. Estamos numa fase de transição, essencialmente. A cidade abriu-se, as pessoas abriram-se, houve uma descaracterização, é perfeitamente normal. Nunca vais olhar para o mesmo Porto da Costureirinha da Sé e do ‘O Pintor e a Cidade’ [filmes de Manuel Guimarães, 1958, e Manoel de Oliveira, 1956, respectivamente]. O Souto de Moura e o Siza fizeram uma intervenção na Baixa que a descaracterizou completamente e que eles próprios justificaram como tendo em vista as praças centrais das grandes metrópoles!”. De qualquer forma, ressalva, “um irlandês ou um sul-coreano têm todo o direito de conhecer e enriquecer a sua vida com esta cidade. Mas isto é uma cidade, não é Palma de Maiorca nem uma estância balnear! Desde que não mexam com as pessoas que vivem na cidade, que respeitem o seu direito de olhar e viver nos sítios em que nasceram. Isso é essencial, não tem preço”. Talvez porque, como também escreveu Torga, todos nós “nascemos num sítio. E ficamos pela vida fora a ver o mundo do fragão que primeiro nos serviu de mirante”.

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