São os Óscares, não é o cinema. É a América

Seis actores negros nomeados, a experiência afro-americana em três títulos que concorrem para Melhor Filme... É a política. E o cinema? “A questão não é o que acontece aos negros, é o que acontece à América” – disse James Baldwin, escritor e activista. A América dos 60s continua.

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A forma como James Baldwin (escritor e activista, na foto rodeado por Charlton Heston e Brando), olhou a América nos anos 60 ainda é uma "história" decisiva - até para estes Óscares
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As negociações e contradições das décadas de 50 e 60 são ainda tempo do cinema de Vedações – até o didactismo escolar do filme
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O modo de vida de uma família negra era descoberto pela América branca: A Raisin in the Sun, 1961, de Daniel Petrie
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La La Land: um filme sobre um músico de jazz (Ryan Gosling) que branqueia a comunidade onde o jazz floresceu, como agora se critica?
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Lover Come Back (1961), de Daniel Mann, com Doris Day e Rock Hudson: a América branca, a cores e escapista

É preciso ver James Baldwin, é preciso ouvi-lo mas é preciso vê-lo. É como observar o movimento vital das testemunhas rodeadas de histórias de desistência moral e de morte. É um corpo elegante e orgulhoso na solidão da sua liberdade. I Am Not Your Negro, de Raoul Peck, é o documentário que trouxe o escritor e activista negro (1924-1987) de volta à América. Assombra neste momento as livrarias e os ecrãs americanos. Nomeado para os prémios da Academia, é um dos sucessos comerciais da Oscar season, dando a ouvir uma voz que se parecia adormecida enche-se agora de dramatismo profético. Vamos vê-lo, em Portugal, em Maio.

Baldwin falou do seu tempo, os anos 50 e 60 da América da segregação racial. Falou da sua descoberta, que era a das crianças negras de 5, 6, 7 ou 8 anos: começavam por ver caras brancas nos ecrãs, achavam que isso as representava, mas descobriam que a América não as incluía, nem na sua realidade nem na sua representação. Torciam por Gary Cooper quando ele matava os índios nos westerns, afinal eram eles os índios (“my countrymen were my enemy”).

Baldwin, no seu tempo, falou de “apatia” e de “ignorância”: uma parte de um país não queria saber da outra (“é isto o que significa a segregação”). Aventurou-se pelo ser americano, país gordo, adormecido, seguro e irresponsável que inventou o american way of life, como quem se atola em narcóticos, para preencher uma falha. “Se os americanos não vivessem tão aterrorizados com seus eus privados”, escreveu, “nunca se teriam tornado tão dependentes do que chamam The Negro problem”.

A América branca, aterrorizada, inventou o nigger. O sonho americano, escreveu, não é um centro apesar das margens de violência, como doença que pode ser curada. Não, o sonho americano já é a violência. “A verdade é que este país não sabe o que fazer com a sua população negra, sonha com qualquer coisa como ‘a solução final’.” I Am Not Your Negro termina assim: “Não sou um nigger. Sou um Homem. Vocês inventaram o nigger. Decidam porquê”

Uma voz do presente

James Baldwin “falou”? James Baldwin “fala”. I Am Not Your Negro é uma voz no presente. O escritor propôs-se, no final dos anos 70, contar a sua história da América a partir dos destinos de três amigos: Medgar Evans, activista afro-americano morto em 1963; Malcolm X, muçulmano, afro-americano, fundador da Organização Para a Unidade Americana, morto em 1965; Martin Luther King Jr., pastor protestante, activista político, assassinado em 1968. Esse livro nunca foi escrito, ficaram páginas soltas. O realizador Raoul Peck tirou-as da obscuridade. Utiliza os textos de Baldwin, lidos por Samuel L. Jackson, e as imagens de arquivo, de presença do escritor em debates televisivos, por exemplo, não para contar uma história do passado, mas para mostrar que essa voz nunca desapareceu porque a América sempre continuou. A América de que Baldwin falava concretiza-se. I Am Not Your Negro é fantasmagórico: o passado continua inescapável neste presente, nesta cerimónia que se sucede à polémica #OscarsSoWhite de 2016. Os títulos da imprensa, quando os nomeados foram anunciados, não se fizeram esperar: números, números, o recorde de seis actores afro-americanos nomeados, três filmes sobre a experiência afro-americana, Moonlight, Vedações e Elementos Secretos, a concorrer para Melhor Filme, e uma categoria, a dos Documentários, dominada pela experiência negra... Agora, afinal, not so white. Os números e as negociações, as quotas. Mas.. e o cinema?

Baldwin era fã de Joan Crawford e das estrelas brancas. Os actores negros, dizia, eram obrigados à caricatura. Não reconhecia neles, no medo que os tornava reféns, o mundo em que ele vivia. Por isso admirava e, simultaneamente, desprezava os heróis brancos. John Wayne, sobretudo. Até que um dia surgiu Sidney Poitier, e um corpo negro pôde representar uma experiência e ser sexual. A negociação começou a ser feita, o modo de vida de uma família negra foi descoberta pela América branca (A Raisin in the Sun, 1961, de Daniel Petrie, é um filme que referencia). Até houve um em que um detective negro (Poitier) e um polícia branco (Rod Steiger) selavam a sua reconciliação. Baldwin viu nesse final uma espécie de beijo em fade out. Era In the Heat of the Night, de Norman Jewinson, em 1967.

Poitier foi o primeiro negro a receber um Óscar: Lilies of the Field, de Ralph Nelson, em 1964. Quem foi o segundo? Denzel Washington, por Training Day, de Antoine Fuqua, em 2001. Denzel assumiu a dívida: “I’ll always be chasing you Sidney”. Faz sentido que, quando em I Am Not Your Negro Baldwin se refere à irrupção de um corpo sexual negro, o de Poitier, nos surja a imagem de Denzel Washington no Glory (1989) de Edward Zwick. Agora o movimento inverso: Vedações, de e com Denzel, adaptando peça de teatro de August Wilson (filme e actor estão nomeados), é um duplo de A Raisin in the Sun, que adaptava uma peça de Lorraine Hansberry. Como se os anos 50/60, as negociações e contradições dessas décadas, fossem ainda o tempo do cinema de Vedações – até o didactismo escolar do filme é o de um presente que não transcendeu significativamente o passado.

Mas há mais: quando, numa espécie de momento de escândalo, Baldwin se refere ao escapismo de Lover Come Back (1961), de Daniel Mann, com Doris Day e Rock Hudson, opondo a essa América branca, a cores e escapista, a brutal realidade a preto e branco, o que se interpõe é La La Land, de Damien Chazelle (14 nomeações, o recorde de All About Eve e Titanic) e o backlash que tem crescido nas últimas semanas: um filme sobre um músico de jazz (Ryan Gosling) que branqueia a comunidade onde o jazz floresceu, critica-se agora. Inicialmente celebrado de forma (excessivamente) eufórica, o musical começou a ser visto (o que é também excessivo) como porta-estandarte de uma América alienada pela fantasia, até (involuntariamente) servindo os desígnios da (nova-velha) América de Trump, desinteressada, não generosa. Caberá dizer que o “pecado” de La La Land é, primeiro que tudo, a parasitação infantil da nostalgia e da cinefilia – a “magia do cinema” serve facilmente para tudo. E que o seu negativo, o filme “realista” que muitos opõem a La La Land - Moonlight, de Barry Jenkins, três pedaços de tempo numa vida afro-americana –, sofre do mesmo efeito de falsidade e de construção convencional com o seu ballet formal a fazer estilo.

Onde está o cinema, afinal? Onde ele pode estar: ao lado. Onde ele pode estar sempre que se trata, como nos Óscares, de validar uma experiência e de imaginar um país. A dado momento de I Am Not Your Negro, alguém, num debate televisivo, critica Baldwin por ele estar sempre a opor negros e brancos, quando ele, escritor negro, até terá mais em comum com a experiência de um escritor branco do que com um operário negro. Baldwin e I Am Not Your Negro vão respondendo a essa questão. Por exemplo, quando às tantas diz: “A questão não é o que acontece aos negros, a questão é o que acontece a este país.” São os Óscares. Não é o cinema. É a América.

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