A orientação sexual de Rubio Dosamantes e o TEDH

As audiências televisivas não podem justificar tudo.

Ninguém terá muitas dúvidas de que a liberdade de expressão é um direito essencial numa sociedade democrática e, em particular, nas complexas sociedades modernas em que, cada vez mais, o saber é poder. E por isso vemos que todos os actores políticos que visam fazer crescer o seu poder pessoal, criando regimes autoritários ou mesmo ditatoriais, cuidam, desde o início, de atacar a liberdade de expressão, nomeadamente a liberdade de imprensa e, por outro lado, atacam os tribunais que, pela sua independência, podem ser uma barreira aos seus desígnios.

Os exemplos na cena internacional, embora cada um com as suas características próprias, são hoje em dia muitos: desde o assassino Rodrigo Futerte nas Filipinas até ao implacável Recep Erdogan na Turquia. Nos EUA, os sistemáticos ataques de Donald Trump à imprensa e ao poder judiciário são uma evidência da mesma lógica autoritária.

Certo é que a liberdade de expressão pode colidir — e colide — muitas vezes com outros direitos fundamentais, nomeadamente com o direito à privacidade e à intimidade, valores cada vez mais essenciais, exactamente por vivermos numa sociedade de informação em que de tudo se fala e tudo se sabe.

Na passada terça-feira, o Tribunal Europeu dos Direitos Humanos (TEDH) decidiu sobre um conflito deste tipo que lhe foi apresentado pela cantora e estrela do showbiz Paulina Rubio Dosamantes. Esta artista mexicana, com carreira e renome internacional, apresentou uma queixa contra Espanha por considerar que o seu direito à privacidade que lhe é garantido pela Convenção Europeia dos Direitos Humanos (CEDH)  tinha sido violado pelo Estado espanhol. O caso era relativamente simples: em três programas televisivos em 2005, Zeca, ex-manager de Rubio Dosamantes, tinha feito diversas afirmações que a artista considerava inaceitáveis e, tendo recorrido aos tribunais espanhóis em nome da sua honra e privacidade, tinha perdido sempre. Para os tribunais espanhóis aquilo que o Zeca tinha dito não punha em causa nem a honra nem a privacidade de Rubio.

Num dos programas, Zeca referira que a relação da artista com o seu namorado era muito tempestuosa e violenta e que ela o humilhava e insultava; e, inquirido se a artista era bissexual, declarou  que ela sempre brincara com essa questão. Solicitado pelo entertainer para explicitar a palavra brincar, o Zeca referiu que a artista tinha uma amiga especial com quem vivia há muito tempo e de quem se dizia que era lésbica e tinha tido outras amigas.

Noutro programa televisivo, dias depois, Zeca afirmou que a artista chamava ao seu namorado “pederasta” e mandava-o “desaparecer” e acrescentou que o problema de droga que o namorado tinha tido tinha sido provocado por Rubio Dosamantes que o enlouquecia. Aproveitou ainda para dizer que tinha sido necessário arranjar um namorado à artista para fazer calar os rumores públicos sobre a sua homossexualidade.

E, no terceiro programa televisivo em que compareceu, voltou a insistir nas mesmas afirmações.

Os tribunais espanhóis tinham considerado que o grau de exposição pública da vida da artista, para a qual a mesma contribuía, e o facto de a sua alegada orientação sexual ser um facto abordado publicamente eram motivos para se considerar não estar em causa a honra e a privacidade de  Rubio Dosamantes.

Não foi assim que o TEDH viu o problema: na ponderação entre o peso em concreto da liberdade de expressão do ex-manager e o direito à intimidade da artista, importava ter em conta que as declarações do Zeca nada traziam com interesse ao debate público, sendo certo que entravam na intimidade da vida privada da artista e esta não era sequer uma pessoa investida em funções públicas, o que poderia justificar uma redução da protecção da sua vida privada. E quanto  à alegada homossexualidade ou bissexualidade, a mesma nunca tinha sido afirmada publicamente pela artista.

O TEDH considerou que o Estado espanhol não tinha protegido devidamente a vida privada de Rubio Dosamantes, e por, isso mesmo, declarou que Espanha tinha violado o direito à privacidade consagrado na Convenção Europeia dos Direitos Humanos.

Mas Madrid não foi condenada no pagamento de qualquer indemnização à artista, porque esta nada pedira.

Sugerir correcção
Ler 1 comentários