Há 17 famílias num prédio da Mouraria que vão ficar sem casa

A Mouraria é um bairro em inequívoca mudança: há condomínios e hostels a nascer por todo o lado. Parece também ser esse o destino de um edifício na Rua dos Lagares, cujos moradores vão esta quarta-feira à câmara pedir ajuda.

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Marcelino queixa-se das más condições da casa, mas não a quer abandonar Daniel Rocha
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Daniel Rocha
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O casal Brito receia o dia em que chegará a carta que os vizinhos já receberam Daniel Rocha

Dezassete famílias que moram num prédio da Rua dos Lagares, na Mouraria, foram informadas de que terão de abandonar as suas casas entre o Verão deste ano e o fim de 2018. Apesar de não haver informação oficial por parte da empresa proprietária do edifício, estão a ser apreciados na câmara pedidos de criação de alojamento local para turistas. A maioria dos inquilinos já vive no edifício há décadas e não tem para onde ir.

É o caso de Marcelino e Maria José Figueiredo, que habitam um apartamento no segundo andar. “Já cacei aqui 76 ratos”, conta Marcelino, enquanto faz uma visita guiada pelas salas repletas dos objectos que ajudam a contar 55 anos de vida nesta casa: fotografias, imagens de santos, livros, porcelanas. A habitação também está cheia de outras coisas, estas mais preocupantes para o casal. “O telhado não está em boas condições”, queixa-se o inquilino. Há, por isso, infiltrações em praticamente todas as paredes e tectos. E, a somar a isto, os ratos. “Tenho aí quatro ratoeiras armadas”, diz Marcelino Figueiredo.

Ele e outros moradores do número 25 da Rua dos Lagares, entre o Largo das Olarias e a encosta da Graça, vão esta quarta-feira à reunião pública da Câmara Municipal de Lisboa pedir ajuda. O prédio amarelo – um dos que, por fora, parecem mais bem conservados nesta estreita artéria – mudou de dono no Verão passado. Poucos meses depois, o novo proprietário, a empresa de investimentos imobiliários IberAquisições, informou um conjunto de inquilinos de que não iria renovar os contratos de arrendamento.

Marcelino e Maria José têm de sair no fim do ano e criticam o facto de não ter havido diálogo nem negociação. Em 2013 assinaram um novo contrato e a renda passou de 90 para 150 euros. E Marcelino garante que estaria disposto a pagar mais, desde que o prédio tivesse as remodelações de que precisa. “A solução era fazerem obras e não nos mandarem embora. A casa é grande e bem trabalhada até ficava bonita”, diz.

Opinião semelhante tem a vizinha da frente, Olinda, cuja renda saltou dos 38 para os 120 euros em 2012 e que tem de se ir embora em Agosto. E também Maria do Rosário Conceição, que habita uma casa com dois quartos no primeiro andar, pela qual paga 350 euros mensalmente. A carta que recebeu obriga-a a procurar outra habitação até Novembro. A braços com grandes dificuldades financeiras, esta moradora diz que não tem “nem para onde ir nem como pagar uma renda maior”, o que a deixa angustiada a pensar no futuro.

“Mesmo mal, a gente queria a nossa casinha, porque é a nossa casinha”, diz Maria do Rosário, que também se queixa do excesso de humidade e de ratos. “Tenho ratoeiras espalhadas pela casa e uma miúda de dez anos sujeita a enfiar lá o dedo”, comenta, abanando a cabeça. A filha, afirma, é a preocupação maior. “Ficar na rua de um momento para o outro com uma miúda de dez anos…”, suspira.

A Mouraria em mudança

"Trá-tá-tá" à esquerda, pum-pum-pum ao fundo, ram-ram-ram algures. Em quase todos os recantos da Mouraria há obras a decorrer, inequívoco sinal de que o bairro está em mudança. A Rua dos Lagares não é excepção. Mesmo ao lado do número 25 está a ser construído um condomínio de luxo que aproveita as carcaças de antigos prédios novecentistas. Vários edifícios da rua já foram reabilitados e outros estão abandonados e a cair, à espera de melhores dias. Não muito longe, no Largo das Olarias, há outros projectos em construção.

O PÚBLICO contactou a IberAquisições para perceber quais são as intenções da empresa para o número 25, mas não obteve resposta até ao fecho da edição. De acordo com o Lisboa Interactiva, uma plataforma da câmara municipal com informações urbanísticas, estão “em apreciação” dois pedidos de “registo de estabelecimento de alojamento local” – o nome oficial dado aos hostels e apartamentos turísticos.

Nem todos os inquilinos receberam ordem de saída – o casal Brito, por exemplo. Mas isso não lhes cala queixas e críticas. “Eu na casa de banho já meti três tectos”, atira Alfredo Brito. É interrompido por Cecília: “Eu moro aqui há 30 anos, não posso estar sempre a fazer obras, senão não tenho para comer!” Ao entrar na casa dos Brito salta imediatamente à vista que todos os armários e gavetas estão abertos. “Tenho sempre tudo escancarado, senão a roupa enche-se-me de bolor”, explica Cecília.

Há uns meses que a renda subiu dos 145 para os 200 euros, mas Alfredo afirma que não tem uma cópia do contrato e teme estar prestes a seguir o mesmo caminho que os outros moradores do prédio.

Um receio que é partilhado por Constância Lopes, moradora há 48 anos, que também não recebeu carta para sair – e que também já não tem o contrato de arrendamento, devido a problemas familiares. A única prova que tem de que é habitante são os recibos da renda. “Estou aqui habituadinha, toda a gente é minha amiga”, conta, de pé na sala apertada com janela virada para a Travessa dos Lagares, à beira da qual vai dando dois dedos de conversa à vizinhança.

O destino deste prédio amarelo já foi abordado na última reunião da Câmara Municipal de Lisboa por iniciativa dos vereadores do PCP. “Mais um exemplo das consequências da lei das rendas” aprovada em 2012 pelo Governo de Passos Coelho, comenta João Ferreira, que advoga uma mudança desta legislação “o mais rapidamente possível”. O comunista diz, no entanto, que, enquanto essas mudanças não chegam, a câmara municipal também tem um papel a desempenhar. “O prédio está num estado deplorável”, pelo que “a câmara deve intervir imediatamente”, afirma o vereador, avançando mesmo a possibilidade de a autarquia tomar posse administrativa do edifício.

João Ferreira, também candidato às autárquicas pela CDU, considera que o município deve “fazer o acompanhamento social de cada uma das situações” do prédio e, se for caso disso, realojar alguns moradores. E lamenta que histórias deste tipo se estejam a repetir com cada vez mais frequência. "Não está a acontecer só ali", alerta.

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