Quanto deve o Estado a São Pedro da Cova?

Estigmatizada por década e meia de associação a um crime ambiental grave, freguesia exige recursos para valorizar o seu património mineiro.

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Adriano Miranda

Seis responsáveis por uma empresa pública e por duas sociedades privadas são acusados, pelo Ministério Público de Gondomar, da co-autoria de um crime ambiental, pelo depósito, em São Pedro da Cova, Gondomar, de uma quantidade enorme, e ainda indeterminada, de resíduos perigosos oriundos da fábrica da Siderurgia Nacional na Maia. Os visados, e uma empresa de capitais públicos que absorveu a firma responsável pela gestão do passivo ambiental da Siderugia, enfrentam ainda um pedido de indemnização ao Estado, no valor de 10,8 milhões. Esta sexta-feira, a Junta de São Pedro da Cova decidiu acompanhar a acusação e exigir-lhes, em tribunal, dois milhões de euros para limpar a freguesia do estigma de década e meia associada a um crime (ainda) sem castigo.

Nas antigas escombreiras das minas, a metros das Piscinas Municipais de São Pedro da Cova, ainda há resíduos numa área e quantidades por apurar que, até serem retirados pelo Estado, prolongam, por mais algum tempo, os riscos para a saúde pública decorrentes deste crime ambiental. O chumbo e zinco, ambos em concentrações muito acima do legalmente admissível, são apenas dois dos metais pesados presentes nos materiais que para ali foram transportados, dia e noite, entre 2001 e 2002, numa operação só aprovada por via do falseamento de análises, diz o Ministério Público. Supostamente, o que para ali foi levado por duas sociedades contratadas pela empresa pública Urbindústria eram apenas inertes e, por isso, o solo nem sequer foi impermeabilizado, abrindo a porta à possível contaminação dos lençóis freáticos.

Ninguém sabe se a saúde da população terá sido, ou não, afectada. Mas o risco, esse, está lá, há 16 anos. “São Pedro da Cova é um local rico em lençóis freáticos e cursos de água. E tem uma população que ainda hoje se serve dos seus poços. Somam-se danos ao nível da imagem da freguesia que hoje está muito mais estigmatizada. Uma freguesia que lida com um conjunto de notícias sobre uma ‘bomba-relógio’ e ‘maior aterro nacional de resíduos perigosos’ tem de ser compensada”, dizia o presidente da junta, Daniel Vieira, à saída do Tribunal de Gondomar, após a entrega, esta sexta-feira, do pedido de indemnização. O montante dessa indemnização, explicou, foi calculado tendo por base um projecto de valorização do património mineiro feito nos anos 90, no âmbito do programa Urban, que abrangia várias áreas da freguesia, incluindo aquela que foi afectada pelo crime ambiental que o Ministério Público quer levar a julgamento.  

Independentemente do resultado deste processo judicial, e da obtenção, ou não, da indemnização agora exigida, o comunista Daniel Vieira acredita que o Estado tem uma dívida para com a freguesia, onde à pobreza de dois séculos de exploração mineira se juntou, no novo milénio, a má fama decorrente deste processo, no qual, acredita, as próprias entidades públicas não estão isentas de responsabilidades. Embora o MP, neste processo-crime, vise apenas responsáveis pelas empresas envolvidas, o autarca não esquece que, desde a interrupção dos trabalhos, em Fevereiro de 2002, o Estado, através da Direcção Regional do Ambiente, passou a saber oficialmente que o que ali fora deixado eram, de facto, resíduos perigosos. E, no entanto, argumenta, até 2010, e apesar das insistências da junta, quer nos mandatos do seu antecessor, quer desde a sua entrada no cargo, em 2009, nada foi feito para os remover, ou obrigar a que fossem removidos pelas empresas envolvidas na transferência.

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Daniel Vieira, presidente da Junta de Freguesia de São Pedro da Cova Adriano Miranda

São Pedro da Cova é um território urbanisticamente desorganizado, onde as casas se encavalitam pelas encostas, abrigando gente que guarda, em muitos casos, histórias associadas à dureza do trabalho nas minas, outrora o grande empregador. “Esta freguesia ainda tem muitas necessidades”, assinala aquele que, em 2009, era o mais jovem presidente de junta do país. À boleia do Urban foram construídos alguns equipamentos, como o campo de futebol, as piscinas, ou o novo bairro mineiro, mas ficou por concretizar aquele que, para o autarca, é um dos projectos mais estruturantes da freguesia: o museu mineiro que, além da construção de um novo espaço museológico, que substituísse o que funciona actualmente na Casa da Malta, previa a reabilitação de todo um conjunto de imóveis e marcas da relação de São Pedro da Cova com a extracção de carvão.

A população vive com intensidade essa memória colectiva, mas desde a referida Casa da Malta (que passaria a biblioteca) às casas do médico, dos encarregados ou do director das minas, passando pelo famoso Cavalete do Poço de São Vicente (já classificado), não faltam estruturas para recuperar e valorizar, através de um roteiro turístico-cultural. Mas faltou sempre o financiamento necessário para concretizar esse projecto. “O maior investimento alguma vez feito em São Pedro da Cova foi o da operação de remoção de parte dos resíduos”, nota, com uma ironia amarga, o autarca. Dois milhões, assume, é o preço, actualizado com a inflação, da proposta, desenvolvida na década de 90 pela Quaternaire para a Câmara de Gondomar. O preço para mudar a imagem e impulsionar o desenvolvimento da freguesia, insiste.

O actual presidente da câmara, o socialista Marco Martins, chegou ao município em 2013, sucedendo a Valentim Loureiro, e assume saber da existência desse projecto, embora não o conheça em pormenor, diz.  Apesar de elogiar os esforços da Junta de São Pedro da Cova, o autarca considera que o pedido de indemnização pode não surtir efeito e diz estar a trabalhar, politicamente, para garantir que o Governo abra linhas de financiamento directas para a concretização de projectos de desenvolvimento desta freguesia que a compensem dos danos que tem sofrido. Entre eles destaca a requalificação da área afectada pelo passivo ambiental da Siderurgia Nacional, a valorização do património associado às minas e o próprio Parque das Serras do Porto, iniciativa que envolve os municípios de Valongo e Paredes e que abrange o território do antigo couto mineiro.

A eventual promessa de uma compensação — venha ela através do tribunal ou do Governo — não apaga, para Daniel Vieira, a necessidade de serem apuradas as responsabilidades políticas pelo problema ambiental imposto à freguesia, pelo tempo que ele está a demorar a ser resolvido e pela sua desvalorização, acusa, por vários governos e seus representantes nos organismos desconcentrados da administração central, ao longo de quase uma década. Se, para o procurador Carlos Teixeira, “todos os arguidos actuaram livre e conscientemente, em comunhão de esforços e sintonia de vontades, sabendo que os seus comportamentos eram proibidos e penalmente punidos”, há outros protagonistas desta história, acredita o autarca, cujo papel, neste crime, ainda não foi tirado a limpo. E também neste caso, avisa, a culpa não pode morrer solteira.
 

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