O azar dos Távoras

No lodo já conhecido há dois factos que ferem os patamares de exigência ética a que obrigam a ocupação de cargos governativos.

Pode dizer-se que António Costa foi esta semana atingido pelo azar dos Távoras. A semana tinha tudo para a propaganda do Governo ser feita pelo primeiro-ministro e ao seu lado brilharem o ministro das Finanças, Mário Centeno, e o ministro adjunto Eduardo Cabrita. O Conselho de Ministros aprovou a lei-quadro da transferência de competências para as autarquias, dando início ao processo da descentralização, e até já é sabido que o PSD está disponível para negociar. No Parlamento, passou à especialidade a lei que introduz quotas de género nas administrações das empresas públicas e das cotadas em bolsa.

Os números da economia ultrapassam as piores expectativas. Em Portugal foi divulgado que o crescimento da economia em 2016 é de 1,4% e ultrapassa os 1,2% previstos pelo Governo e os 1,3% estimados pela Comissão Europeia. E a Comissão oficializou que o défice em 2016 será de 2,3%, prevendo que em 2017 possa ser de 2% e em 2018 de 2,2%, confirmando assim que Portugal está na pole position para sair do procedimento por défice excessivo.

Mas eis que o azar dos Távoras se abateu sobre António Costa. O lodo que envolve o processo de nomeação de António Domingues para a presidência da CGD, que tem sido despejado a baldes cheios, sujou o Governo de tal forma que não há resultados positivos que a propaganda política possa fazer resplandecer, por maior que seja o domínio de Costa nesta arte.

E se a história ainda está para provar a veracidade do suposto plano para matar o rei D. José I, que esteve na base da acusação do Marquês de Pombal à família do putativo candidato à coroa, o duque de Aveiro e marquês de Torres Novas, e à família do marquês de Távora, no caso do primeiro--ministro parecem não restar dúvidas de que o seu ministro das Finanças não esteve à altura das exigências éticas do seu cargo. Nada disso resultará na saída de Centeno do Governo, até porque, se tal acontecesse, o projecto de governação ficaria ferido de morte, como já escrevi. Mas isso não diminui a gravidade das atitudes.

No lodo já conhecido há dois factos relacionados com a actuação de Centeno e de Costa que ferem os patamares de exigência ética a que obriga a ocupação de cargos governativos: o envolvimento claro da figura do Presidente da República no processo e a aceitação de que um escritório de advogados costurasse os conteúdos de uma lei à medida de serem vestidos por Domingues. Isto além, claro, da gravidade da questão de fundo: querer ludibriar uma regra de transparência democrática ao evitar entregar declarações de interesses ao Tribunal Constitucional.

É verdade que, pelo menos desde o Governo de Durão Barroso, é prática cada vez mais comum haver recurso a escritórios de advogados para participarem em processos legislativos. É, aliás, para tentar diminuir esse fenómeno que o primeiro-ministro anunciou a criação do Centro de Competência Jurídica, uma medida que está relacionada com o importante processo de simplificação legislativa e modernização administrativa conduzido pela ministra Maria Manuel Leitão Marques. Mas a conivência de Costa e Centeno com uma lei assim tão de alfaiate, feita exactamente à medida de quem a veste e tentando ludibriar a legislação anterior, atinge níveis de falta de ética de Estado que indigna.

Igualmente grave é a forma como o Presidente surge neste processo, citado em sms trocados entre Centeno e Domingues. Foi usado como argumento de negociação e envolvido como decisor numa fase do processo que não lhe competia. O que transparece sobre o envolvimento de Marcelo Rebelo de Sousa no "negócio político" com Domingues choca com qualquer critério sobre qual é a ética de quem ocupa funções de Estado e põe em causa o saudável funcionamento entre Presidente e Governo.

No meio do lodo, foi perceptível a facilidade do PSD e do CDS para fazerem barulho e a inabilidade para se centrarem no que realmente importa. Já agora que falamos da CGD, quando é que o país vai conhecer em pormenor o plano de recapitalização e a real situação do banco público?

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