Comunicação de espíritos

Num tempo avesso às coisas do espírito, Maria Capelo tenta reconduzir a atenção para essa outra camada dos coisas que habitam e povoam o mundo e que diz respeito ao invisível.

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Encontrar a intensidade apropriada para poder dizer lugares que já não designam uma condição geográfica ou topológica, mas são lugares poéticos e espirituais

Todas as exposições possuem, como ambição, estabelecer a singularidade de um território, de uma sensibilidade, de um fazer. No caso da nova exposição de Maria Capelo (n. Lisboa, 1970), essa ambição expressa-se através da apresentação daquilo a que o curador chama a sua oficina de bastidores. A qual é composta de imagens, fotografadas, desenhadas ou pintadas, filmes e os livros e poetas que constituem a inspiração da artista ou, como passou a ser convenção dizer dos artistas do século XXI, são os seus materiais de pesquisa. E é importante localizar a junção de todas estas coisas num plano de pesquisa e tornar claro que não se tratar de uma espécie de intrusão nos segredos bem guardados e privados de um artista.

Tratando-se de uma pintora a quem são estranhas outras expressões plásticas — ainda que o desenho ocupe um lugar central na construção do seu universo —, é importante tomar nota da maneira não hierárquica, não cronológica e não causal como são apresentados os seus tão diferentes materiais de trabalho. Quase se poderia dizer serem presenças que, de uma ou outra forma, estão sempre presentes no gesto que desenha e que pinta. E é importante sublinhar esta ideia de procura porque o desenho e a pintura são, para Maria Capelo, uma forma de procura ou, se se preferir, são as ferramentas que utiliza para construir um conhecimento do mundo e da paisagem que o compõe. Mas esta não é uma paisagem em face da qual a artista se destaca e distancia; pelo contrário, as paisagens que continuamente surgem no trabalho desta artista são, simultaneamente, objecto da pintura — o seu referente — e atmosfera vital, condição da vida e da arte , na qual a artista habita, onde se move e actua.

É uma certa ideia de paisagem que domina esta nova exposição: mas existe um paralelismo, acentuado pela contraposição das diferentes obras expostas, entre uma paisagem interior, formada por múltiplas camadas de tempos, coisas e matérias, e uma outra exterior que a artista tenta fazer surgir nas folhas de papel. E é este encontro entre diferentes dimensões da ideia de paisagem que está em causa.

Para a artista o conceito de paisagem, aprendido com o geógrafo Orlando Ribeiro, não é uma entidade poética, mas significa o modelo da sua observação do mundo e das suas coisas. Numa entrevista, publicada no texto da exposição, diz a artista: “enfrento uma paisagem, um espaço, uma árvore, um ponto de vista de um sítio, um pouco como quem enfrenta um rosto, ao qual tenho de me aproximar insistentemente, para o conhecer”. É nesse ataque que o desenho é fundamental. Um ataque, paciente e atento, que caracteriza tanto os desenhos, como as suas pinturas.

Estas não são paisagens bucólicas ou idílicas, mas lugares duros e austeros. Os lugares que a artista escolheu ler (Serra do Caldeirão, Las Hurdes a partir do filme de Buñuel e as colinas de Santo Stefano Belbo em Itália) têm uma história comum de isolamento, pobreza e violência. E esta é a história dos desenhos da exposição. Não é que Maria Capelo pretenda redimi-los da sua condição essencial de isolamento, mas o seu gesto filia-se numa tensão pictórica: encontrar a imagem certa, a intensidade apropriada, para poder dizer aqueles lugares que já não designam uma condição geográfica ou topológica, mas são lugares poéticos e espirituais.

Num tempo estranho e avesso às coisas do espírito, Maria Capelo tenta reconduzir a atenção para essa outra camada dos coisas que habitam e povoam o mundo e que diz respeito ao invisível e à descoberta do ser humano enquanto espírito. E a arte é a ferramenta utilizada para concretizar a descoberta dessa dimensão não-animal do humano: aqui a arte assinala, como diria Bataille, a vitória do humano sobre a sua bestialidade originária. E cada obra desta arista é uma aproximação a esse lugar em que arte abandona a sua condição de objecto no espaço e se transforma, ainda segundo Bataille, numa comunicação de espíritos.

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