Os novíssimos exploradores da arca sem fundo

Este congresso pessoano deu voz a uma nova geração de investigadores, que estuda o diálogo da obra com o cinema, relê o Livro do Desassossego como um romance, ou propõe mesmo uma outra visão da heteronímia.

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Da esq. para a dir.: Jorge Uribe, Rui Sousa, Rita Marrone, Bruno Fontes, Nuno Amado e Flávio Penteado. Madalena Lobo Antunes chegou mais tarde e não ficou na imagem Nuno Ferreira Santos

“Quando digo que estou a trabalhar no esoterismo de Pessoa olham para mim de lado, parece que o esoterismo continua a não ser uma categoria reconhecida do pensamento humano, e no entanto está por trás do lançamento do modernismo e era uma visão do mundo então muito em voga”, constata a italiana Rita Catania Marrone, lembrando o exemplo de W. B. Yeats, enquanto vai consumindo distraidamente os seus canelones de espinafres numa cafetaria da Gulbenkian geralmente reservada ao pessoal da casa.

Como os outros cinco investigadores com quem o PÚBLICO almoçou num intervalo do Congresso Internacional Fernando Pessoa, Rita Marrone – uma italiana que, depois de se ter formado em Filosofia, prepara actualmente, na Faculdade de Letras de Coimbra, uma tese de doutoramento sobre a biblioteca esotérica do poeta português – é um desses vários pessoanos da novíssima geração que a directora da Casa Fernando Pessoa, Clara Riso, fez questão de trazer a este congresso, que terminou no sábado.  

Nos limites do que permite uma breve conversa colectiva travada à mesa de uma cafetaria buliçosa, fica a impressão de que não faltará nem diversidade, nem profundidade, nem perspectivas inovadoras ao futuro próximo dos estudos pessoanos. E prosseguindo uma tradição que vem do tempo dos pioneiros Pierre Hourcade ou Georg Rudolf Lind, e que nunca esmoreceu, parece estar igualmente garantida uma forte presença de investigadores estrangeiros: além de Rita, esta pequena amostra da nova geração incluiu o brasileiro Flávio Rodrigo Penteado e o colombiano Jorge Uribe.

Recém-doutorados ou ainda às voltas com as respectivas teses, alguns destes novos exploradores da inesgotável arca do poeta aventuram-se a desbravar territórios que até hoje raro pé pessoano pisou, como Bruno Fontes, que investiga as relações de Fernando Pessoa com o cinema, ou acreditam conseguir tirar algo de novo de tópicos que pareciam definitivamente espremidos, como Flávio Penteado, que quer afastar o estudadíssimo “drama estático” O Marinheiro da órbita exclusiva de Maeterlinck para o aproximar de um Ibsen ou de um Strindberg, ou ainda, como Nuno Amado, não estão com meias medidas e apontam directamente ao coração, propondo nada menos do que uma nova teoria geral da heteronímia, ainda que resguardada na designação mais prudente de “redescrição”. 

Como ia intervir na sessão seguinte e teria de sair mais cedo, Rita foi a primeira a falar e chamou desde logo a atenção para uma vantagem de que qualquer nova geração, seja em que campo for, dispõe por natureza, mas que adquire uma relevância particular nos estudos pessoanos: contar com o trabalho realizado pelas anteriores. “O meu projecto de estudar a biblioteca esotérica de Pessoa, exemplifica, nasceu a partir da digitalização feita pela Casa Fernando Pessoa dos livros que pertenceram ao poeta”. Foi aí que percebeu que “muitos desses volumes estão relacionados com temas esotéricos, e é visível que o seu interesse pelo oculto se desenvolve ao longo de toda a vida: há livros de 1915 e adquiriu o último, sobre a Maçonaria, em Outubro de 1935”, no mês anterior à sua morte.

Mas as sucessivas gerações de pessoanos que vasculharam a arca e sondaram o génio criativo de Pessoa não conseguiram, talvez felizmente, compor um retrato definitivo e consensual do poeta. “Os novos estudiosos”, assegura Rita, “têm a percepção de que esta é uma obra sem fundo, um mistério que não se pode resolver, e é por isso que estão hoje aqui, porque há sempre alguma coisa a descobrir, a estudar”.

Ela escolheu o esoterismo, na sequência de autores cujo trabalho elogia, como Yvette K. Centeno, Dalila Pereira da Costa ou Teixeira da Motta, e inclina-se para ver em Pessoa alguém que, mais do que ter pretendido deixar obra teórica no campo do esoterismo, se interessou pelo oculto em benefício do poeta que foi, e que “utiliza em muitos poemas a tradição alquímica na prática da escrita”.

Seu colega no programa de doutoramento Materialidades da Literatura, da Universidade de Coimbra, Bruno Fontes está a investigar o diálogo da obra pessoana com o cinema, interessando-se não apenas pelo modo como o poeta olhou para esta nova arte, mas também para as formas que o cinema tem encontrado para lidar com a obra pessoana. 

Notando que “há pouco cinema pessoano, só 4 ou 5 filmes”, Bruno lembra Conversa Acabada (1980) de João Botelho, que, “tirando alguns comentários avulsos, é tudo texto de Pessoa e Sá-Carneiro”, ou “Filme do Desassossego”, que o mesmo realizador estreou 30 anos mais tarde, e no qual “99 por cento das intervenções orais”, observa, “são citações textuais do Livro do Desassossego (LD)”, para explicar que o seu objectivo é “perceber como é que um texto pode servir como material de produção de um filme, e como é que “o choque dessas duas materialidades” interfere na criação fílmica.

O libertino

Rui Sousa, da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, acha que Pessoa é um libertino e propõe-se fundamentar essa convicção. Dito assim, surpreende um pouco, mas convém ter em conta que a acepção de libertino que o investigador recupera não é a de debochado, hoje muito corrente, mas “a que parte de Montaigne e dos seus discípulos, e que vê no libertino alguém que reconhece que a sociedade é um produto de várias ficções”. E nesta perspectiva, o “homem superior”, conceito de reconhecida relevância para Pessoa, seria “aquele que está consciente dessas ficções sociais e que consegue pairar sobre elas, criticando-as a todas”, alguém que “não valida a verdade nem pela tradição, nem pelo número de apoiantes, nem pela opinião alheia”. Este modelo de “espírito permanentemente crítico”, encontra-o Pessoa, sugere Rui Sousa, no filósofo céptico português Francisco Sanches (1550-1623), um homem que “criticava a máxima socrática ‘só sei que nada sei’ por achar que nem isso era possível saber-se”. 

Este Pessoa ensaísta, no sentido de “alguém que problematiza tudo, dos pequenos pormenores do quotidiano às grandes questões filosóficas”, está também presente, defende Rui, no LD, e em particular na sua segunda parte. “Uns dizem que é um diário, outros uma autobiografia, eu sempre me inclinei para achar que podia ser lido como um livro de ensaios”.

Já Madalena Lobo Antunes, da Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, e que integra a equipa do projecto Estranhar Pessoa, inclina-se noutra direcção, e a sua tese procurará demonstrar que se pode olhar para o LD como “um romance moderno, equivalente ao Ulisses de Joyce ou aos romances de Virginia Woolf”. A partir da ideia de “escrita da consciência”, tema bastante debatido neste congresso, vê no LD “um possível romance de ‘stream of consciousness’”, no qual a consciência do guarda-livros Bernardo Soares reage ao que o rodeia. “Tenho pensado muito na relação dele com os seus colegas de trabalho e com o Patrão Vasques”, que seriam personagens desse hipotético romance, diz Madalena, que trouxe à Gulbenkian uma derivação das suas reflexões principais, na qual pensou Bernardo Soares à luz de conceitos marxistas como o de alienação. Em O Capital, observa, “Marx dedica um capítulo ao guarda-livros, que é alguém que organiza os números, a relação do trabalho com o capital”.

Flávio Penteado, da Universidade de S. Paulo, não é bem um pessoano estrangeiro, já que no Brasil “Pessoa é praticamente um autor nacional”. Quando Flávio explicava aos seus alunos do secundário, com 15 ou 16 anos, que o poeta era português, “era a primeira vez que ouviam isso”. O Pessoa que decidiu investigar, o dramaturgo, não deixou muita obra. A par de algumas peças incompletas encontradas no espólio, escreveu O Marinheiro, que Flávio Penteado reconhece ter sido inspirada pelo simbolismo francês, “mas para o ultrapassar”. O texto deve ser lido “à luz dos grandes dramaturgos modernos europeus, como Ibsen ou Strindberg”, defende o investigador.

Um Reis romântico

Doutorado pela Faculdade de Letras de Lisboa com uma tese sobre as leituras que Pessoa fez de Oscar Wilde, Walter Pater e Matthew Arnold, autores centrais para a concepção pessoana de crítica literária, Jorge Uribe integra hoje, como Flávio Penteado, o Centro de Estudos Pessoanos da Universidade de S. Paulo. Com um percurso que incluiu já alguns anos de trabalho com o espólio e a biblioteca pessoanas, o que o ocupa neste momento são os textos que Pessoa publicou em vida. Observando que “nem sequer há uma edição completa desses textos”, Uribe, que também integra a equipa do projecto Estranhar Pessoa, argumenta que “o mito do génio anónimo, que não queria publicar, fez com que se perdesse um pouco o contacto com o que Pessoa foi em vida”.

Na polémica que há muito divide os pessoanos entre os que dão prioridade a revelar tudo o que ainda esteja inédito e os que acham que o essencial está publicado – ou até, na versão mais radical, que já o estava quando Pessoa morreu –, Jorge não hesita: “Concordo com as duas”. Ou seja, percebe “a ansiedade de se querer ver tudo”, mas também acha que “os textos que Pessoa publicou em vida têm um valor especial, porque ele escolheu-os com muito cuidado, não foi acidental”.

Nuno Amado acha que há uma terceira via, que é “olhar para as coisas publicadas, e mais conhecidas, e tentar vê-las de um modo diferente”. Foi justamente isso que fez. Na sua tese, que defendeu há pouco mais de dois meses, este jovem pessoano convertido à causa pelo professor António Feijó – também integra o Estranhar Pessoa, de que Feijó é o coordenador científico – decidiu “partir de Ricardo Reis para explicar a heteronímia de um modo diferente”.

Se pretender propor uma nova solução para o enigma que vem assombrando sucessivas gerações de pessoanos denota alguma temeridade, fazê-lo através de Ricardo Reis não é menos surpreendente, já que todos que os que o tentaram antes (incluindo o próprio Pessoa) partiram de Alberto Caeiro.

Nuno Amado conseguiu, em tempo recorde, naquela barulhenta mesa da cafetaria da Gulbenkian, resumir de forma compreensível o essencial de uma tese complexa e fascinante, mas o espaço de que dispomos só nos permitirá, e com inevitável perda de coerência, deixar aqui um resumo desse resumo. Sustentando que os três heterónimos principais só fazem sentido em conjunto e não podem ser autonomizados, Nuno defende que Ricardo Reis, no qual vê “um poeta romântico”, e não o neo-clássico dos manuais, é “uma espécie de continuação de Caeiro”.  E se Caeiro morre cedo, argumenta, é porque “aquela figura genuína do guardador de rebanhos”, um poeta que “reage sistematicamente contra a ideia de consciência”, não poderia ter sobrevivido enquanto tal. E na sua morte, transmuta-se em Ricardo Reis, “que é um Caeiro com consciência, e portanto uma figura de tal modo diferente que merece outro nome e uma obra diversa”.

Há algumas pontas soltas: ainda que o seu sistema a três heterónimos permita talvez contornar o problema, seria interessante descrever a posição do Pessoa ortónimo nesta equação, e Nuno Amado reconhece que a sua explicação para o surgimento de Álvaro de Campos “é ainda muito precoce”, mas intui que “os heterónimos são como bonecas russas umas dentro das outras”, e que “se Reis é Caeiro com mais qualquer coisa, Campos será esse Reis, que já é Caeiro, e ainda mais qualquer coisa”.

 

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