Burke, o rosto dos conservadores na luta contra o Papa

O cardeal norte-americano é a personagem central de dois embates recentes entre Francisco e a ala mais conservadora da Igreja. Pode a eleição de Trump dar fôlego aos que querem travar o Papa argentino?

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O cardeal Raymond Burke mantém um braço de ferro com o Papa Francisco REUTERS/Max Rossi

As intrigas no Vaticano já não se segredam apenas nos corredores. As fugas de informação dos últimos anos destaparam um pouco mais aquilo que se passa entre os muros da cidade-estado. Ainda assim, é muito pouco habitual ver um cardeal assumir a sua divergência com o Papa, cuja autoridade é suprema e inquestionável, como acontece agora com Raymond Burke. O muito conservador cardeal norte-americano dá a voz aos que criticam o rumo escolhido por Francisco e o braço-de-ferro teve um dos últimos episódios na crise que levou ao afastamento do líder da Ordem de Malta. O caso foi resolvido, mas a tensão permanece e receia-se que possa ganhar contornos políticos, a reboque da avalanche populista que varre a Europa.

O caso atingiu tons de escândalo no primeiro sábado deste mês. Ao nascer do dia, foram encontrados dezenas de cartazes colocados pelas ruas, mostrando o habitualmente sorridente Papa de rosto sombrio. Escrita em dialecto, a mensagem questionava: “Ah Francisco, apoderaste-te de congregações, afastaste padres, decapitaste a Ordem de Malta e os Franciscanos da Imaculada, ignoraste os cardeais… afinal onde está a tua misericórdia?”. Ninguém assumiu a autoria dos cartazes, que a prefeitura mandou tapar por afixação ilegal, mas o texto dava pistas claras, ao apontar para as duas polémicas recentes em que Burke surge como personagem central.

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As autoridades consideraram que os cartazes foram afixados ilegalmente REUTERS/MAX ROSSI

Amoris Laetitia

O antigo arcebispo de Saint Louis – que em 2004 disse que deveria ser negada a comunhão a John Kerry, o então candidato democrata à Casa Branca, que apesar de católico defende o direito ao aborto – era presidente da mais alta instância do direito canónico, quando Francisco chegou ao Vaticano, em Março 2013. Foi afastado do cargo um ano e meio depois, no exacto dia em que terminava o primeiro dos dois sínodos sobre a família convocados pelo Papa – reunião em que Burke foi um dos grandes opositores a uma maior abertura da Igreja a quem vive em união de facto, voltou a casar ou é homossexual.

Um debate que deu origem, no ano passado, à exortação apostólica Amoris Laetitia, em que Francisco abriu a porta, ainda que apenas uma frincha, à possibilidade de os católicos que voltaram a casar poderem aceder à comunhão. Mas a discussão que ele queria ver encerrada não terminou – a margem dada pelo texto levou as conferências episcopais a adoptar posições diferentes e os conservadores acusaram-no de pôr em causa a indissolubilidade do matrimónio. 

Em Setembro, quatro cardeais, entre eles Burke, enviaram uma carta ao Papa, pedindo-lhe que clarificasse cinco dúvidas (dubia) sobre as consequências da exortação na doutrina da Igreja que, diziam, estavam a criar “desorientação e grande confusão entre muitos crentes”. Francisco não respondeu e semanas depois a carta foi divulgada. Numa entrevista ao jornal L’Avvenire, o líder da Igreja Católica disse que não "perdia o sono” com o assunto, mas referiu-se “aos que não são honestos nas críticas, que agem de má-fé para fomentar divisões”. 

Mas o assunto não ficou por ali. Em Novembro, Burke fez um ultimato ao Papa a quem jurou obediência: ou respondia às perguntas ou avançaria para um “acto formal de correcção de um erro grave”. “Os cardeais são os principais conselheiros do Papa. Se permanecêssemos em silêncio perante estas dúvidas fundamentais […] estaríamos a cometer uma falha grave na caridade com o Papa”, disse Burke ao jornal National Catholic Reporter. Apesar de alegar que a correcção do Pontífice é uma tradição da Igreja, canonistas ouvidos pelo site italiano Vatican Insider disseram não encontrar exemplos históricos de tal iniciativa. E o prefeito da Congregação para a Doutrina da Fé, o também conservador Gerhard Müller, criticou Burke por trazer para a praça pública questões que só podiam sido debatidas em privado e garantiu que a exortação “é muito clara em termos doutrinais”.

Ordem de Malta

Foi com esta tempestade a fermentar que outra desabou. Em 2014, o Papa nomeara Burke patrono da Ordem de Malta, organização religiosa nascida no tempo das Cruzadas que reúne milhares de membros e voluntários, com missões humanitárias em dezenas de países. Mas o que poderia ter sido um exílio aproximou o cardeal de um influente bastião do tradicionalismo católico. E a sua presença sentiu-se quando, em Dezembro, o grão-mestre da Ordem, o britânico Mathew Festing, demitiu o “número três” da organização, Albrecht von Boeselager, por alegadamente ter permitido distribuição de preservativos em acções de que ele era responsável em África e na Birmânia – a acusação foi lançada por um grupo americano próximo de Burke, recorda o New York Times.

O alemão, que dizia ter sido afastado por ser considerado “demasiado liberal”, recorreu ao Papa, querendo saber se Francisco exigira o seu afastamento, tal como lhe tinha dito Burke. O Vaticano garantiu que tal não era verdade e nomeou uma comissão de inquérito, mas Festing recusou colaborar, dizendo que se tratava de um assunto interno de uma entidade soberana.

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O cardeal Raymond Burke REUTERS/Alessandro Bianchi

O braço-de-ferro terminou no final de Janeiro quando o Papa mandou chamar Festing e lhe exigiu a demissão – o britânico, cujo cargo deveria ser vitalício, aceitou. E, sem afastar o cardeal, nomeou um delegado para presidir “à renovação moral e espiritual da Ordem”, esvaziando de facto as funções que ele detinha.

“O Papa Bergoglio conseguiu o que queria, mas para isso teve de usar a força, violando tanto a lei como o senso comum”, escreveu o historiador Roberto Mattei no site Rorate Caeli. Fazendo eco das críticas de outros conservadores, dizia que a “tomada hostil” iria ter “graves consequências não só para a Ordem, como para os católicos de todo o mundo, cada vez mais perplexos e confusos com a forma como Francisco governa a Igreja”. Dias depois, os cartazes apareciam colados nas paredes de Roma.

A intervenção na Ordem de Malta “será vista como um indicador da determinação de Francisco de não se deixar amedrontar pelos críticos”, disse ao Financial Times John Allen, antigo correspondente no Vaticano e director do jornal católico Crux. Diz, no entanto, que a contestação que os cartazes expuseram não é inédita (tanto João Paulo II como Bento XVI foram muito criticados) e não deve ser sobrevalorizada. "Sim, é muito sonora e tem a simpatia em algumas altas instâncias, incluindo em alguns cantos da hierarquia católica", mas Francisco continua a ser um Papa muito popular entre os fiéis.

Os cartazes foram retirados, aliados do Papa repudiaram as insinuações, mas é pouco provável que as forças envolvidas neste embate tenham adormecido. "O Vaticano está assente na tradição e quando as diferentes partes dessa tradição começam a entrar em conflito umas com as outras, isso é um sinal perigoso", disse ao New York Times o veterano vaticanista John Travis.

Um receio a que não é alheia a eleição de Donald Trump e a ascensão dos partidos de extrema-direita na Europa — ambos armados com uma retórica anti-imigração e anti-islão de que Francisco tem sido um dos grandes detractores, ao insistir no dever do Ocidente de acolher quem foge à fome e à guerra. "Os apoiantes do Papa temem que a vitória de Trump deixe o Papa um pouco mais isolado e isso encoraje os seus críticos tanto dentro como fora do Vaticano", resumia há dias a rádio norte-americana NPR.

Coincidência ou não, o jornalista italiano Francesco Grana noticiou que, já depois de desautorizado pelo Papa, Burke recebeu Matteo Salvini, o líder do partido xenófono Liga do Norte, que por várias vezes denunciou os apelos do Papa a favor dos refugiados.

Dias depois, o New York Times noticiou que Steve Bannon, o actual estratego e principal conselheiro de Trump, conheceu Burke durante uma visita ao Vaticano em 2014 e que ambos partilham a visão de que o "islão ameaça enfraquecer o Ocidente através da erosão dos valores cristãos tradicionais". Meses depois, Bannon, então só ainda responsável do site de informação propagandístico Breitbart, deu uma palestra num instituto do Vaticano fundado por um amigo de Burke em que defendeu a urgência de uma "igreja militante" para enfrentar "o fascismo islâmico jihadista". Burke, por seu lado, saudou a eleição de Trump como uma vitória para os opositores do aborto e reconheceu fundamento às preocupações que o agora Presidente invoca para erguer muros e fechar as portas da imigração - em claro contraste com as críticas da maioria dos bispos americanos ao decreto presidencial que suspendeu a entrada de refugiados e nacionais de sete países de maioria muçulmana.

Mas Antonio Spadaro, padre jesuíta que é um dos mais próximos confidentes de Francisco, desvaloriza e diz não acreditar que a ascensão dos populistas dê força a quem quer travar as suas reformas. "Ele está a avançar e a avançar muito depressa".

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