Em Alcoutim, há um médico que faz a saúde andar sobre rodas

Em vez dos doentes se deslocarem ao Centro de Saúde, é o clínico que vai ter com as pessoas, levando consigo a esperança de vida. As consultas fazem-se numa unidade móvel - uma espécie de consultório ambulante

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José Tavares manifesta orgulho no trabalho Enric Vives-Rubio
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Antes de regressar a casa, mandam os hábitos antigos, oferecem-lhe ovos ou laranjas em troca da consulta Enric Vives-Rubio
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Antes de regressar a casa, mandam os hábitos antigos, oferecem-lhe ovos ou laranjas em troca da consulta Enric Vives-Rubio
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“Isto, sim, é medicina. Sinto que faço parte da família deles” Enric Vives-Rubio

Um médico que veio da Argentina e um enfermeiro português que vive em Espanha fazem a saúde girar sobre rodas no Algarve - circulam de monte em monte, a dar consultas, como se vendessem pãezinhos quentes. Os utentes do concelho de Alcoutim, a maioria velhotes, dão graças ao divino por haver alguém que se lembra da sua existência. “Uma bênção que caiu dos céus”, diz Lídia Gomes, agradecida por ter a seu lado o médico que não passa só receitas – oferece, também, esperança.

A idosa, de 86 anos, dá passos miudinhos em direcção à unidade móvel de saúde. “Sabe, o que tenho de pior são os joelhos”, queixa-se. O doutor José Tavares desdramatiza: “São coisas da idade, está tudo bom”. A mulher sorri e mostra o boletim com o registo das análises clínicas que o enfermeiro José Galrinho lhe entregou. Senta-se no poial do café Montinho/Balurcos. A carrinha médica da Cruz Vermelha Portuguesa (CVP) acabara de encostar. A população da aldeia, empoleirada à beira do rio Guadiana, está na rua. “Hoje é dia de festa”, observa a dona do café. Entre a clientela, reina a boa disposição. “Senhor doutor, vai uma cervejinha?”, pergunta um dos doentes. “Não, obrigado, só um cafezinho”.

O cabo Martins, da Guarda Fiscal, com um copo de vinho tinto ao lado, troca a conversa das doenças pela petiscaria. “Ainda hoje como uns belos petiscos com os amigos que fiz quando estava na guarda ”. O antigo militar, com a autoridade que lhe confere o bigode farfalhudo, recorda: “Nunca prendi ninguém - fechava os olhos, quando eles [contrabandistas] atravessavam o rio com os sacos de café ”. Os comes-e-bebes, em doses exageradas - lembra-lhe o amigo Joaquim Cavaco - dão maus resultados: “Tens o lado esquerdo do corpo apanhado”, recorda. Um Acidente Vascular Cerebral (AVC) deixou sequelas físicas no antigo guarda-fiscal, mas não lhe retirou a boa disposição. “Miséria - naquele tempo era só miséria – agora, estamos de fronteiras abertas”, evoca

Esta comunidade envelhecida, conta o médico, padece de todos os males relacionadas com a idade e os maus hábitos de vida - hipertensão, artroses e diabetes. “Isto não está nada bom, pois não, senhor doutor”, pergunta Teolinda Madeira, a proprietária do café. A tensão arterial elevada, que lhe foi diagnosticada, indicia que algo não bate certo. “Talvez seja de não tomar medicamentos há muito tempo”, admite. O enfermeiro José Galrinho ajuda a fazer a interpretação do boletim de informação clínica, traduzindo em linguagem comum o significado dos valores das análises ao sangue. Pelo meio, vai deixando algumas indicações sobre comidas a evitar. “Cuidado com o sal”, avisa.

José Galrinho, especialista saúde mental e psiquiatria, presta serviço no Centro de Saúde de Alcoutim mas vive em Ayamonte. A mulher, também enfermeira, trabalha no outro lado da fronteira. “Ganha em Espanha quase o dobro que auferiria em Portugal”, enfatiza. Por outro lado, o hospital de Faro continua a debater-se com falta de especialistas. O último concurso público, com 46 vagas abertas em várias especialidades, só teve oito interessados. A medicina interna, por exemplo, dispunha de sete lugares para preencher, nem um concorreu. A oftalmologia, com duas vagas, também ficou em zero. Em Alcoutim, diz José Tavares, “há doentes que estão há dois anos à espera de uma consulta às cataratas, quando chegar a altura da operação já estão cegos”. A ginecologia/obstetrícia, outra das áreas de grande carência, teve um candidato de Braga, que estava disposto a ir para Faro, mas desistiu à última hora. As razões, explicou o presidente do conselho de administração do Centro Hospitalar do Algarve, Joaquim Ramalho, estão relacionadas com o agregado familiar. “Não encontrou ocupação para a mulher, formada em Relações Internacionais”. 

Consulta paga com ovos

Num território de 570 quilómetros quadrados, não chega a três mil o número de habitantes. Os povoados de Alcoutim (cerca de uma centena) vão tombando, pedra a pedra, acompanhando o ciclo de vida das pessoas. A meio da tarde, os idosos encostam-se às esquinas das casas, procurando resgatar os fugidios raios de sol que lhes aquecem o corpo e a alma. No Montinho, a máquina de café tem capacidade para tirar umas duas centenas de bicas seguidas mas, como a clientela é pouca, saem por dia apenas sete ou oito cafés. O espaço, diz Teolinda Madeira, “funciona como Centro de Dia” e o que vende, lamenta, “não dá para pagar a conta da electricidade”

A ideia de criar um serviço de saúde móvel, em Alcoutim surgiu há cerca de duas décadas, por iniciativa da câmara. De início, a assistência era prestada apenas por um enfermeiro, que se deslocava numa carrinha com motorista. Nos últimos três anos, a equipa foi reforçada um médico. “Estamos a substituir-nos ao ministério da Saúde”, acentua Osvaldo Gonçalves, presidente da câmara, sublinhando que é a autarquia quem paga o trabalho dos profissionais de saúde quando é prestado em horário pós-laboral. O reconhecimento da importância do serviço de saúde ao domicílio surgiu há pouco tempo, quando a Administração Regional de Saúde (ARS) assinou um protoloco com o município para que as consultas da unidade móvel fossem integradas no programa do Serviço Nacional de Saúde. Assim, em vez dos idosos terem de se deslocar, com dificuldade, ao Centro de Saúde, a consulta é marcada por telefone ou Internet – mas este moderno meio tecnológico, em dois anos de vigência, ainda não foi usado. As deslocações ocorrem uma vez por mês em cada monte, em sistema rotativo. Entretanto, oito dos 16 municípios da região candidataram-se a apoios dos fundos comunitários para comprar carrinhas médicas, seguindo o exemplo de Alcoutim.

Na passada quinta-feira, a saída da equipa clinica tinha encontro marcado para o sítio do Barroso, onde vive menos de uma dezena de pessoas. Porém, uma avaria na viatura obrigou a adiar a deslocação para o próximo dia 14. “Quando chegar lá a carrinha, há-de estar já preparada a mesa, para comermos e bebermos todos juntos – é sempre assim que acontece”, conta o médico. Uma vez terminadas as consultas, diz, segue-se uma merenda partilhada.

José Tavares manifesta orgulho no trabalho: “Isto sim é medicina, sinto que faço parte da família deles”. Antes do regresso a casa, se a galinha não estiver choca, mandam os hábitos antigos, oferecem-lhe ovos ou laranjas em troca da consulta.

O sequestro que mudou a vida do médico

Um programa na RTP-Internacional esteve na origem de uma mudança radical na vida de José Tavares quando estava na Argentina. “Passou uma reportagem sobre Barrancos [Alentejo], onde as pessoas, idosos, se queixavam que não tinham médico”. A mulher, recorda, comentou: “Que sítio tão estranho, este é local para onde eu nunca iria”. Ironia do destino: acabou por ir viver para Barrancos e ficou lá sete anos.

Em traços largos, a história passa-se do seguinte modo: O casal foi vítima de um sequestro: “Dois indivíduos entraram no meu carro – um colocou a pistola à cabeça do meu filho de três anos, o outro apontou para a barriga da minha mulher”. A ameaça de morte, relata, terminou com o pagamento de um resgate e a promessa de manter as autoridades afastadas do caso. Os pormenores deste episódio, sugere, “dariam para escrever um livro”.

José Tavares nasceu na maternidade Alfredo da Costa, em Lisboa, tendo emigrado para a Argentina com os pais quando tinha dois anos. O regresso a Portugal não estava no seu horizonte. Decidiu fazer uma viragem de 180 graus na carreira de médico, ao fim de 21 anos de trabalho, depois da ameaça de morte à família. Um ano mais tarde, estava colocado em Lisboa, no hospital Amadora/Sintra. Quando se preparava para começar a fazer “bancos” naquela unidade de saúde, veio-lhe à memória as imagens que vira na televisão sobre Barrancos. Ligou para a câmara: “O telefonista foi tão convincente a fazer a apologia das maravilhas da sua terra que fiquei logo quase convencido a fazer as malas”. Passados dois dias, um motorista do presidente da câmara bateu-lhe à porta, dizendo que tinha ordens para o levar a visitar Barrancos. Foi amor à primeira vista. “Acabei por desistir de Lisboa e fui para o Alentejo”. A mulher e os filhos, mais tarde, foram ter com ele. A experiência por terras do baixo Alentejo durou sete anos.

Tudo parecia correr bem até ao dia em que um dos seus seis filhos, na altura a estudar em Madrid, veio visitá-lo e pede-lhe para ir conhecer Sagres. Na passagem por Vila Real de Stº António falaram-lhe de uma terra do interior – Alcoutim - que estava a precisar de médico. A mulher, conta, gostou tanto de Vila Real de Stº António que o convenceu a mudar-se para o Algarve. O município de Alcoutim, depois de tantos apelos, sem êxito, para fixar médicos, recebeu-o de braços abertos. O vice-presidente do executivo autárquico, Paulo Jorge Paulino, destaca o perfil humanista do clínico. “O doutor Tavares cria empatia com as pessoas, com muita facilidade”. E o clínico explica: “Sabe qual é o segredo? Na Argentina fui médico de pessoas em cujas casas a minha mãe, 30 anos antes, tinha sido empregada de limpezas”. Acrescente-se outra característica, que o próprio omite: humildade.

A insularidade algarvia

O peso da interioridade nesta zona do Algarve, diz o presidente da câmara de Alcoutim, Osvaldo Gonçalves, chega a ser maior que a insularidade nos Açores. Um exemplo: a médica Verónica Willians trocou, recentemente, Alcoutim por uma povoação no interior da ilha de São Miguel. “Fui muito bem recebida no Algarve, gostava de lá estar, mas fui forçada a partir”. O que a fez abandonar, disse, foi a precariedade: “A empresa que me contratou só me garantiu um contrato de três meses”.

Verónica Williams, cubana, com 20 anos de experiência profissional, chegou há dois anos e meio ao abrigo de um programa de cooperação com o Serviço Nacional de Saúde (SNS) português. Depois de ter estado em Mafra, onde diz ter “feito de tudo um pouco” na área na medicina, rumou ao sul. Quando terminou o contrato que a vinculava ao SNS, disse, ficou por sua conta e risco. “No Algarve tinha um contrato de três meses, nos Açores ofereceram-me uma proposta melhor em termos de carreira”.  A médica cubana, contactada pelo PÚBLICO, admitiu o regresso desde que as condições melhorem: “Não digo que não voltarei, trabalho em qualquer sítio”, enfatizou. 

O autarca, socialista, acha que a deslocação de médicos para a periferia “passará por um conjunto de incentivos destinados a criar condições à fixação”. Mas, no caso do Algarve, especifica, falta, também, informação sobre aquilo que a região tem para oferecer. “As boas acessibilidades permitem viver na serra e chegar à praia em menos tempo do que se leva a atravessar a avenida de uma grande cidade”, exemplifica.

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