A eutanásia, os partidos e os deputados

Os referendos, se o debate for sério e a questão colocada não for capciosa, são uma das mais decisivas manifestações da democracia participativa, mas não são o ponto final na discussão e debate de cidadãos.

Têm os deputados, na actual legislatura, legitimidade ética para votar a despenalização da eutanásia e do suicídio medicamente assistido? Não, não têm.

Porque tais alterações substantivas na concepção antropológica da nossa vida e morte — já para não dizer no nosso ordenamento jurídico (Constituição da República Portuguesa, art.º 24º, “a vida humana é inviolável”, e, claro, a grande questão é saber quem define o que é uma vida humana, a minha vida humana) — não constam, salvo erro, do programa de qualquer partido.

Não constaram de qualquer programa eleitoral em Portugal na última campanha, em 2015, excepto na do PAN. Não foram, nestes termos, tema anunciado de eventual discussão e votação na legislatura em curso. Não foram então referidas como tema de eventual referendo nesta legislatura. Eram quase em absoluto do total desconhecimento dos eleitores quando em Outubro de 2015 votaram para os actuais deputados da Assembleia da República (AR) — e só votaram 57%.
E, no entanto, no contexto de um alargado e esclarecedor debate de cidadãos que pode e deve incluir petições, abaixo-assinados e outras iniciativas à proporção (pareceres de conselhos e comissões de ética, por exemplo) que são timbre numa genuína democracia participativa, é essencial que estas questões sejam debatidas com serenidade e sabedoria prática. Numa linguagem transparente, com unívocos conceitos que todos compreendam, sem truques semânticos, eufemismos e dissimulações, intencionais ou não.

Na discussão que é necessário haver — e que influenciará o voto de muitos em obrigatório referendo — não importa que partidos, deputados, AR ou Governo sejam o ponto de partida. É bom, de resto, que o não sejam obrigatoriamente, já que terão de ser o inevitável ponto de chegada: quaisquer iniciativas (referendo incluído, sobretudo se legalmente vinculativo), ao se plasmarem em políticas públicas, conduzem à respectiva discussão e votação na AR e a posterior regulamentação governamental.

Quando vota num partido, o cidadão tem de saber o que é que todos os deputados eleitos vão decidir sobre estas questões. Não se pode dar um cheque em branco em temas tão essenciais que não foram discutidos nem constam dos programas que inspiram os mandatos dos actuais deputados — afinal pode ser uma vida que acaba intencionalmente.

Formalmente — não interessa agora aquilo que se decide — os partidos podem aqui assumir publicamente a sua posição de modos diversos. Por exemplo, através de um claro posicionamento, favorável ou desfavorável, com disciplina no voto. O mesmo com liberdade de voto (“é uma questão de consciência individual”). Na recusa de posição definida, com total liberdade de voto individual. Também endossando a questão para referendo na próxima legislatura.

Em qualquer caso, os partidos devem tomar uma posição clara, envolvendo militantes e eleitores, mostrar à sociedade civil que se preocuparam e preocupam seriamente com estas questões, e que o não fazem sob pressão à última hora.

A liberdade de voto dos deputados, mesmo ao arrepio da decisão do respectivo partido ou grupo parlamentar, é, na ética de convicções e de responsabilidade, indiscutível. Mas suscita perversas questões na identidade e estabilidade legislativa: quanto maior for a liberdade de voto, maior a possibilidade de o sentido da votação mudar consoante os deputados que lá estão, independentemente dos partidos ou da legislatura.

A decisão dos deputados pode ser tão individualizada que, no limite, é apenas a decisão daquelas pessoas, naquele momento: a mesma maioria parlamentar, na mesma legislatura, pode até tomar decisões diferentes. Eis um bom exemplo de dissonância entre a ética individual das convicções e interesses políticos.

Já os referendos, se o debate for sério e a questão colocada não for capciosa, são uma das mais decisivas manifestações da democracia participativa, mas não são o ponto final na discussão e debate de cidadãos. Basta dizer que entre nós já houve dois referendos sobre a IVG (1998, 2007) com desfechos antagónicos. Acresce que o resultado do referendo não se materializa por si mesmo em políticas públicas — estas, sim, mudam a praxis — sem ter de passar pela AR e pela regulamentação governamental.

E, nestas questões bioéticas, em Portugal as regulamentações por despacho governamental excedem em muito — quando não traem — o espírito da própria lei, em áreas tão diferentes e sensíveis como IVG, DAV (directivas antecipadas de vontade), PMA (procriação medicamente assistida), o que é deveras preocupante e antidemocrático. Recorde-se que, em 2015, houve uma iniciativa parlamentar, entretanto não concretizada talvez por receios eleitoralistas, que pretendeu mudar a regulamentação da actual lei da IVG de 2007 e suscitou vivo debate.

Tudo será diferente, se todos os partidos, a partir de agora, discutirem estas questões. E, após debate tão alargado quanto o queiram e saibam fazer, anunciem atempada e publicamente a respectiva posição e intenção, incluindo-a ou não no seu programa e declaração de princípios, ou, ao menos, no próximo programa eleitoral. Mesmo que seja para dizer que não querem mudar o actual estado de coisas.

Então, sim: os eleitores sabem no que estão a votar e sabem o que pode ou não vir a mudar nesta área.

 

 

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