O trono e a cama

A encenação inteligente de Graham Vick e um bom punhado de cantores deram uma nova vida à ópera de Donizetti, uma obra que tem muito mais do que virtuosismos vocais.

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A ópera Anna Bolena com a encenação de Graham Vick. Daniel Rocha
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Anna Bolena Daniel Rocha
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A soprano romena Elena Mosuc LUSA/JOÃO RELVAS;Joao Relvas

Um trono e uma cama sobre plataformas sobrepostas que giram: a encenação de Graham Vick coloca de forma inteligente a ópera Anna Bolena entre estes dois eixos, bem visíveis desde o começo. Enquanto o trono pertence ao soberano, a cama é o lugar “democrático”, onde quase todas as personagens se deitam. Vick transforma Anna Bolena num interessante palco de jogos de poder, e faz ouvir com outros ouvidos a ópera de Gaetano Donizetti.

As mulheres que passam, logo no início, indicam que Anna Bolena não está só, não é a única. São as seis mulheres de Henrique VIII - e Anna não foi a primeira nem será a última sacrificada pela violência do rei. Mas nesta ópera, apesar da tirania de Enrico (na ópera o rei inglês fica com nome italiano), ninguém é só vítima ou só carrasco. E todos são também vítimas de si mesmos, o que torna tudo muito menos linear do que poderia parecer.

Anna Bolena é, nesta produção, Elena Mosuc. E as coisas não começaram bem no dificílimo arranque de Anna no dia de estreia. O começo da soprano de origem romena foi feito demasiado em esforço, traindo-se nos agudos e no ritmo, e prejudicando a expressão daquele coração angustiado “em que nenhum olhar pode penetrar”. Mosuc melhorou francamente ao longo da récita, e bastaria a extraordinária ária “Oh! Che si duole?” da penúltima cena para perceber que se trata de uma cantora com grandes recursos técnicos e expressivos. E perdoar-lhe tudo o que antes não fez tão bem. No fim, ela cumpriu espectacularmente o destino “com o perdão na boca”. Antes disso, na terceira cena do segundo acto, fez um dueto espantoso com Jennifer Holloway, que esteve aliás impecável no papel de Giovanna Seymour. Nesse belo dueto “solidário” das duas mulheres que se deixaram seduzir pelo trono, clarifica-se e alarga-se o sentido da ópera, com ajuda da certeira encenação de Vick. O trono da rainha está caído e a próxima vítima – a amante - é coroada.

Donizetti tinha pouco mais de trinta anos em 1830, mas já sabia usar todos os artifícios musicais e teatrais para fazer desta ópera uma complexa teia de paixões, traições, arrependimentos e culpas, com extraordinárias cenas de conjunto a quatro e a seis vozes. Com um libreto bem arquitectado por Felice Romani, o compositor põe os espectadores não apenas a ver e a ouvir de fora (e a sentir compaixão), mas a participar nas decisões da (in)justiça e a reflectir sobre os erros que todas as personagens cometem, a pensar sobre o amor e o poder, o trono e a cama.

O rei tirânico e maquiavélico, que não conhece o perdão nem a clemência, também ama. O baixo Burak Bilgili, sem deslumbrar, fez um Enrico VIII com pés e cabeça. As maiores surpresas vieram porém dos papéis secundários: para além de Luís Rodrigues (Rochefort) e Marco Alves dos Santos (Hervey), houve dois brilhantes cantores a dar vida a Percy (o tenor Leonardo Cortellazzi, rigoroso e corajoso como a personagem) e a Smeton (a excelente meio-soprano Lilly Jorstad, num papel masculino que parece ter migrado dos cupidos de Mozart). O coro do São Carlos fez um bom trabalho, dando intensidade à cena em pequenos mas decisivos momentos. Acertada esteve também a Orquestra Sinfónica Portuguesa, bem dirigida por Giampaolo Bisanti. Não é fácil dirigir musicalmente esta ópera onde muito se joga na questão da velocidade, da aceleração e do ritmo interno das cenas, na articulação com os cantores.

É triste quando vence o tirano. Mas não terão todos ajudado a que isso aconteça, entre a mentira escusada, a traição, a sede de poder e a recusa do amor verdadeiro?

 

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