Há emendas melhores do que o soneto

Toda a gente fala de emendas que são piores do que o soneto. Ora, isso é uma grande injustiça que o lugar-comum faz à literatura: ninguém se lembra de todos os sonetos que foram salvos por uma boa emenda. Pensar o contrário é pressupor que o poeta é sempre um génio que acerta à primeira ou um autor tão medíocre que nenhuma emenda o possa salvar.

Na maior parte das venturas humanas, porém, andamos ali algures no meio. E assim foi no caso político das últimas duas semanas.

Recordemo-lo: a descida da TSU como forma de compensar a subida do salário mínimo era um mau soneto. Foi encomendado às pressas pelo Presidente da República e posto em papel sem garantias pelo primeiro-ministro. Acima de tudo, tratava-se de uma medida que dava dois sinais errados: o primeiro, de que uma subida do salário mínimo carece por natureza de uma contrapartida para o patronato; e o segundo, de que manter trabalhadores a salário mínimo poderia passar a dar desconto.

Só a distração que Pedro Passos Coelho providenciou ao dizer que chumbaria uma descida da TSU que (ainda que noutros moldes) tinha defendido no passado ajudou a disfarçar esse pecado original. A intenção de Passos era a de embaraçar a maioria de esquerda, na tentativa de enfatizar as diferenças entre os partidos que a compõem e causar uma crise no governo. Essa tática esbarrou em dois problemas. Por um lado, ninguém ignora que há diferenças entre os partidos de esquerda sobre a TSU, pelo que essa informação não só é trivial como é menor do que a revelação de que o PSD está sempre capaz de dar uma reviravolta só para provar o que toda a gente já sabe. E em segundo lugar — mais importante — de cada vez que o PSD utiliza esta tática de obstrução obriga a esquerda a procurar uma nova solução de compromisso, acabando assim a provar que a maioria funciona. (O PSD deveria optar por propor mais do que bloquear, e assim causaria mais engulhos à geringonça, mas quem sou eu para dar conselhos? Espero que não me ouçam.)

Ainda por cima — para voltar ao início — a substituição da descida da TSU no salário mínimo pela redução do Pagamento Especial por Conta (PEC) foi uma emenda melhor do que o soneto original. Se formos ao encontro dos pequenos e médios empresários que compõem boa parte da nossa economia real não é da TSU que ouviremos falar. O PEC, esse sim, é um inimigo das empresas em dificuldades que se vêem intimadas a pagar num ano mau pelos lucros que obtiveram no ano bom: dependendo do tamanho da empresa, a atual redução pode representar uma diferença de milhares ou dezenas de milhares de euros em caixa numa fase do ano em que há investimentos a fazer, material a comprar e salários a pagar. O ideal, para estas empresas, seria mesmo que o PEC acabasse ou fosse substituído por um regime voluntário.

A solução encontrada teve ainda a vantagem de trazer a esquerda para a discussão de um tema que muitas vezes não é tido como seu património, e que no entanto é crucial: como simplificar e ajudar a vida das PMEs em Portugal. Foi o PCP, se não erro, que primeiro propôs a redução do PEC, e acabou sendo o primeiro-ministro que o anunciou. Conseguiram com isso falar a um setor que não é em geral visto como sendo de esquerda — mas que o PSD tinha acabado de alienar com a sua tática.

Para todos os observadores fica a demonstração: a democracia é, precisamente, um processo de fazer emendas em sonetos. Os filósofos chamam-lhe “iterativa”: funciona por erro e acerto. E agora que acabou de vez a ideia de que há em Portugal um arco da governação que exclui determinados partidos, é no parlamento que se devem corrigir os erros e procurar os acertos. Isso pode escapar a quem pretenda ver no chilique da semana passada os sinais de uma crise na geringonça, mas não escapa a quem mais importa: aos trabalhadores que vão ter um aumento de salário mínimo e aos pequenos e médios empresários que verão atenuada uma das suas dores de cabeça.

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