Amadeo, uma história tão portuguesa

A recriação da exposição de 1916 de Amadeo de Sousa-Cardozo chega a Lisboa.

Cubismo, futurismo, expressionismos, simultaneísmo, tudo apreciou e a tudo negou pertencer
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Passaram cem anos. Mudaram as mentalidades, os hábitos visuais, os gostos, os paradigmas artísticos, e a própria definição do que a arte é. E talvez por isso Raquel Henriques da Silva e Marta Soares, historiadoras da arte, tenham decidido recriar na medida do possível a exposição que Amadeo de Souza-Cardoso fez em 1916 no Porto, primeiro, nos jardins de Passos Manuel, e em Lisboa, mais tarde, nas instalações da Liga Naval. Como nessa altura, a exposição que vemos hoje começou no Porto, embora no Museu de Soares dos Reis. Vem agora para Lisboa para ser mostrada nos novos espaços do Museu do Chiado, a pouco mais de 500 metros de onde inicialmente esteve, no Palácio do Calhariz, em frente ao elevador da Bica.

Não se sabe grande coisa da montagem feita por Amadeo nesse espaço, que na altura era sede de encontros e tertúlias de sectores monárquicos da sociedade lisboeta. Longe dos quase 30.000 visitantes que tivera no Porto, a exposição de Lisboa receberia um público consideravelmente menor, e também gozaria de maior fortuna crítica nos jornais da capital. Claro que os aplausos não foram unânimes e na época em questão outra coisa não poderia ter sucedido. Portugal não estava preparado para a obra de Amadeo, regressado há pouco de Paris, onde convivera com nomes grandes das vanguardas artísticas da época, e fora dos poucos, senão o único artista português emigrado, a entender o que se passava na capital francesa e a captar tudo aquilo que ela lhe podia oferecer na altura. Cubismo, futurismo, expressionismos vários, simultaneísmo, tudo conheceu, tudo apreciou, e a tudo negou pertencer. Em Lisboa, conheceria o seu grande interlocutor português para a arte moderna, Almada Negreiros.

Recordemos os factos. Com o começo da guerra, Amadeo vê-se obrigado a abandonar Paris e a regressar a Portugal. Instala-se em Manhufe, na quinta de família, e prepara então, segundo Marta Soares, uma série de exposições individuais de que esta, em 1916, seria apenas a primeira. Tudo é feito às custas do dinheiro paterno, e um dos documentos mais fascinantes da exposição é um dos folhetos com a lista das obras presentes tendo indicado, para cada uma delas, o preço pretendido pelo pintor. Há indícios de que terá vendido obras no Porto e em Lisboa. Mas a única certeza é uma pintura de pequenas dimensões realizada num estilo expressionista que, na data da exposição, Amadeo já tinha abandonado há muito.

Sem a facilidade que existe hoje de documentar um evento através da fotografia e do filme, as curadoras só puderam trabalhar com suposições daquela que foi a montagem original de Amadeo. A exposição abre com uma grande fotografia daquele que seria o aspecto de uma das salas da Liga, pejada com os peixes embalsamados da colecção oceanográfica de D. Carlos I que aqui estava em depósito. É impossível saber hoje em que salas especificamente a exposição se deu. Mas é perfeitamente legítimo imaginar a disposição dos quadros feita por Amadeo, segundo as regras da época que não criavam séries por afinidades estilísticas ou cronológicas, como hoje geralmente sucede, antes lhes preferindo o agrupar de obras segundo técnicas – óleo, gravura, desenho… - ou mesmo segundo conveniências do espaço disponível.

Marta Soares e Raquel Henriques da Silva tentaram reproduzir este modelo, avisando-nos contudo que, das 113 peças originalmente mostradas, apenas 81 estão agora expostas. Toda a exposição se organiza em torno desse acontecimento original que marca, sem dúvida, a presença das vanguardas na arte moderna portuguesa. Algumas séries, como as Cabeças e as Canções populares, têm maior probabilidade de coincidirem com a montagem original. Quanto às outras obras, surpreendem por correspondências que as curadoras conseguiram salientar – os alvos na última sala da exposição, ou os faróis numa outra, ou ainda as correspondências estilísticas entre os diferentes universos iconográficos (o mar representado como montanhas azuis em A Chalupa, por exemplo, ou a inclusão de letrismos na pintura, tão ao gosto do cubismo, ou ainda a tentativa de incluir elementos musicais em determinado quadro), e isto apesar da surpresa insólita de uma montagem feita segundo parâmetros que hoje nos custam a aceitar.

Amadeo de Souza-Cardoso. Porto Lisboa 2016 – 1916 não é, por isso, um pastiche. É a interpretação possível de um acontecimento maior na arte moderna da época, um acontecimento irrepetível e que não teria descendência durante anos e anos. Com a morte de Amadeo, em 1918, o fim do futurismo português e a emigração de Almada para Madrid, no fim da década de 20, a modernidade portuguesa iria tomar um caminho radicalmente diferente, e que não passava pela incompreendida vanguarda possível. Afinal, a história desta exposição acaba por ser uma história bem portuguesa: aquela de alguém que queria muito mais do que o Portugal pobrezinho e estreitinho estava preparado para lhe dar. Nisto, só nisto, a exposição foi afinal a primeira de muitas outras.

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