A Lavagem do Bonfim

Se há cidade mais misturada que mais se vista de branco do que São Salvador da Bahia de Todos os Santos (também conhecida apenas como Bahia), não conheço. Detonada por um descaso chocante, e ainda assim indestrutível.

Foto
DR

1. Esta história vai do século XVII à tomada de posse de Donald Trump. Enquanto ziliões de terráqueos estavam em contagem decrescente para o Grande Pesadelo Americano (que sendo norte-americano tem efeitos colaterais em ziliões), uma cidade da América do Sul vestia-se de branco para caminhar oito quilómetros, como uma antípoda de Trump: gente de todas as cores, religiões e géneros lado-a-lado. Se há cidade mais misturada que mais se vista de branco do que São Salvador da Bahia de Todos os Santos (também conhecida apenas como Bahia), não conheço. Detonada por um descaso chocante, e ainda assim indestrutível.

2. No fim do século XVII foi erguida uma capela em Setúbal para o Senhor Jesus do Bonfim. Um eremita da Arrábida, fugitivo, terá esculpido o Cristo Crucificado que ali se alojou, entre azulejos e talha dourada, atraindo romarias. Era o tempo da grande exploração do Brasil, do grande tráfico de escravos. Nomeado para atravessar o Atlântico, o capitão-de-mar-e-guerra Teodósio Rodrigues Faria mandou fazer uma cópia desse Cristo de Setúbal, levou-a para Salvador em 1745, e colocou-a numa capela. Mas a devoção foi tanta que se fundou uma irmandade e depois, em 1754, uma igreja do Bonfim. Até hoje é a mais célebre do Brasil.

3. Para cada festa baiana do Senhor do Bonfim, desde a fundação, os escravos tinham de lavar o interior da igreja e a escadaria. Depois deixou de se lavar o interior, mantiveram-se os degraus. Na mão dos africanos, o Senhor do Bonfim cruzou-se com Oxalá, orixá que no candomblé é o filho mais velho de Olorum, divino criador. Foi assim que na véspera do Grande Pesadelo Americano me achei numa procissão em que o cristianismo convive com o candomblé, e a Lavagem do Bonfim é também a celebração das Águas de Oxalá.

4. Salvador parou nessa manhã de Janeiro de 2017, dia de semana em que ninguém trabalha. A procissão partia do Largo da Conceição da Praia, no centro da cidade, de onde seguiria para o Bonfim, colina num extremo de Salvador, a oito quilómetros. O céu foi quase clemente, porque havia algumas nuvens, mas às nove da manhã, sempre que as nuvens se iam, o sol já era tórrido. E nove da manhã revelou-se tarde: quando cheguei já aquele mar de baianas de jarras ao ombro cheias de água de cheiro se tinha posto a caminho, com uma interminável cauda branca. Vendo do alto, correndo para apanhar a procissão, era um formigueiro de vultos brancos, turbantes brancos, chapéus brancos, traçados pelas colares de contas azul-royal e brancas que são as cores dos Filhos de Gandhi, um dos mais célebres blocos de Carnaval da Bahia. Cristo, candomblé e carnaval.

5. Comprei o meu colar de contas e fui furando até avistar os primeiros Filhos de Gandhi, as primeiras baianas de saias brancas rodadas, turbantes de toalhas de mesa engomadas, flores e folhas frescas nos braços. Descemos ladeiras em ruínas, fachadas desbotadas, aqui bandeiras de um Partido Comunista, ali faixas da Polícia Civil, cada qual com sua luta. Continuei a furar até um edifício de três pisos de azulejo com dezenas de janelas em ogiva tão esventrado e devoluto que só ele diz tudo sobre o que os governantes não fizeram por Salvador nas últimas décadas. Famílias de mãos dada, gays de mão dada, negros negríssimos de tronco nu e cocar de índio, filhos de Gandhi com dezenas de colares traçados no tronco, e ao longo da calçada vendedores de chapéus contra o fogo do céu, e bancas de acarajé, o petisco baiano mais célebre. Só o acarajé dava uma crónica: como qualquer convertido a baiano é capaz de devorar uns dez, apesar de apenas meio já encher qualquer não-convertido. Converti-me à Bahia mas apenas a meio acarajé. Para quem não conhece: é uma espécie de pastel de bacalhau feito de uma massa de feijão frade e recheado com vatapá, que por sua vez é um molho com camarões secos, leite de coco, pimenta, pão ou farinha, amendoim e azeite de dendé (óleo de palma). Mas nunca dizer a um baiano que o acarajé é uma espécie de pastel de bacalhau, nem sequer de bolinho de bacalhau. Porque ele vai dizer, e se não disser acha, que acarajé não se compara com nada.

6. Um pequeno camião cheio de Filhos de Gandhi, mais Filhos de Gandhi a pé. Fácil reconhecê-los pelo turbante com uma faixa caída na nuca e o azul-e-branco das roupas. E um núcleo de baianas majestosas, imperiais, rainhas passando debaixo de um viaduto que anuncia: Igreja do Bonfim, 5 km. Ainda, com este sol?! A promessa ao fim é linda, baianas a lavarem os degraus da igreja com as suas águas de cheiro, mas o sol ganha. Desvio estratégico para uma ladeira lateral, de onde será preciso contornar muito para chegar ao centro, ao Terreiro de Jesus, outra das moradas de Cristo nesta cidade baptizada com um dos seus nomes, Salvador.

8. No terreiro de Jesus estão duas das igrejas mais espantosas do Brasil, São Francisco e Ordem Terceira de São Francisco. Esta última tem uma fachada barroca ocre com altos relevos que não se parece com nada que eu tenha visto em terra brasileira. Lá dentro, percorrendo corredores, salões, claustros, painéis de azulejos com cenas da metrópole e um trono em que se sentaram os dois Pedros do Brasil, e antes deles D. João VI. Velhas janelas de guilhotina, portadas, assentos de janela, espelhos que parecem saídos de um Dürer, soalhos que ranjem. Na igreja em si, nave e altar são um requinte em ouro: aqui veio parar o trabalho de milhões de escravos.

9. Os filhos dos filhos dos filhos desses escravos chegarão dentro em pouco à beira do Bonfim, filhos e filhas, aqueles que multiplicaram a religião única, a misturaram feito vatapá, e como visão colectiva de beleza, força e resistência são todo um amuleto contra os senhores dos maus fins.

Sugerir correcção
Ler 6 comentários