Uma conferência russa para impor a paz dos vencedores na Síria

Conseguir por fim que a ajuda chegue a quem dela mais necessita e que o cessar-fogo seja efectivo é o que leva a oposição armada e a ONU a Astana. Salvar Idlib de um massacre é o grande prémio.

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Manifestação de apoiantes de Assad numa praça central de Alepo Reuters

Meio milhão de mortos, sete milhões de deslocados e seis de refugiados depois, começa esta segunda-feira em Astana uma conferência de paz que junta pela primeira vez representantes do regime de Bashar al-Assad e líderes de grupos armados que o combatem. É uma conferência russa – apesar de ser co-organizada por russos, turcos e iranianos – na capital de uma ex-república soviética, o Cazaquistão, e mais do que poder influenciar a futura estabilidade na Síria, sela em definitivo a nova era mundial onde a Rússia conduz em vez de aceitar ou se opor ao que outros propõem.

A Astana chegaram no domingo os principais membros das duas delegações. Do lado do regime, em vez do ministro da Informação, como nas tentativas de negociação promovidas pelas Nações Unidas em Genebra, a liderar o grupo está o embaixador na ONU, Bashar Jaafari. Pelos rebeldes, estavam previstos oito enviados mas afinal há 14 (para além de 21 conselheiros, papel a que foi relegada a oposição política), incluindo Mohammad Alloush, chefe do comité político do grupo Jaish al-Islam (homem que nas rondas de Genebra falava em nome do Alto Comité de Negociações da oposição, grupo que não foi convidado), e membros do Exército Livre da Síria, primeiro movimento armado a surgir em 2011, formado por desertores e civis.

Jaafari diz que os principais pontos em debate serão o fortalecimento do cessar-fogo anunciado por Moscovo e Ancara no fim de Dezembro – o mesmo que permitiu evacuar os bairros de Alepo que ainda escapavam ao regime e onde se encontravam dezenas de milhares de pessoas – e um acordo sobre combate ao terrorismo. “Se Astana é apenas para debater um mecanismo de cessar-fogo e o acesso humanitário, então é positivo. Mas não será uma boa ideia que comecem a discutir questões políticas porque isso vai representar a marginalização das outras forças”, comentou à Reuters um comandante do Exército Livre.

Mais fracos do que nunca, depois da derrota em Alepo, praticamente reduzidos à província de Idlib e a alguns pequenos enclaves de território, os rebeldes estão divididos como nunca. A conferência de Astana, para a qual os russos convidaram quem entenderam, só contribuiu para aumentar tensões.

“Ir a Astana tem mais perigosos do que ir a Genebra”, diz Mohammad Aboud, do Alto Comité de Negociações. “Em Genebra, havia uma frente política em nome da oposição que tinha conquistado reconhecimento internacional, enquanto em Astana há muita ambiguidade e o patrocínio é da Rússia, que é uma força de ocupação e não de mediação”, defende. O mais provável, antecipa, é que “a polarização aumente” entre os opositores, “e isso pode ser um dos reais objectivos dos russos”.

Os Estados Unidos foram convidados a estar em Astana a semana passada, mas a nova administração de Donald J. Trump respondeu no sábado que não teria tempo para enviar uma delegação de Washington e vai fazer-se representar pelo ainda embaixador no Cazaquistão, George Krol, que participará “como observador”. De fora ficou a França, por exemplo, país que tentou ao longo dos últimos seis anos pressionar os Estados Unidos a serem mais assertivos face a Assad. A Arábia Saudita e o Qatar, os principais aliados dos grupos da oposição, também não foram convidados.

As Nações Unidas receberam um convite e o enviado para a Síria, Staffan de Mistura, vai estar presente. O problema, como quase sempre em relação às negociações sobre o conflito sírio, é a diferente interpretação do que está em causa pelos diversos participantes. Mistura vê Astana como um primeiro passo no regresso das partes às conversações enquadradas pela ONU e por planos estabelecidos ao longo dos anos pelos diplomatas que lhe antecederam neste posto – em concreto, vê estes dias de debate no Cazaquistão como preâmbulo dos que ele próprio marcou para 8 de Fevereiro, de novo em Genebra. É pouco provável que russo e sírios concordem.

Imensa responsabilidade

Jan Egeland, colaborador de Mistura para as questões humanitárias, disse que o papel da ONU nas discussões de Astana estava ainda por definir este fim-de-semana. “Dou por adquirido que a Rússia, a Turquia e o Irão compreendem a imensa responsabilidade que assumem enquanto garante de um processo que deve abrir uma nova era para a população civil da Síria”, afirmou numa conferência de imprensa na cidade suíça.

E apesar da “cessação de hostilidades” que em grande parte se tem mantido ao longo de Janeiro, a ajuda humanitária continua sem chegar a quem dela mais precisa, lamentou Egeland. Mesmo que o regime aprove o seu plano de ajuda, explica, as viaturas das agências da ONU e da Cruz Vermelha permaneceriam ainda bloqueadas no que descreve como “um pântano burocrático desesperante” criado pela existência de várias facções armadas e as dúvidas sobre quem vigia o cessar-fogo e quem controla quem e o quê.

O que esperar então de Astana? A oficialização da legitimidade de Assad é um dos objectivos que se vão cumprir, agora que a Turquia, o país que mais vociferou a necessidade do ditador abandonar o poder na Síria por massacrar permanentemente o seu povo, está empenhada numa renovada aliança com os russos e preocupada em empurrar os curdos para longe do seu território e combater o Daesh (autoproclamado Estado Islâmico). Esmagada a resistência a Assad, “os factos no terreno mudaram dramaticamente e a Turquia já não pode insistir numa solução sem Assad, não é realista”, disse na sexta-feira o vice-primeiro-ministro turco, Mehmet Simsek.

Símbolo de salvação

Como habitualmente antes de uma nova ronda negocial, Assad deu uma entrevista, desta feita a uma televisão japonesa, onde repetiu que a sua saída não está em debate e que a conferência servirá para “combater o terrorismo” e “promover a reconciliação”.

No terreno, o que os sírios querem é um cessar-fogo real e a ajuda a chegar. Os combates permanecem acesos em dezenas de sítios, como no vale de Wadi Barada, nos arredores de Damasco, ou em redor de Deir Ezzor, a cidade no meio do deserto onde 93 mil habitantes estão isolados desde que os jihadistas conquistaram a área que servia de largada dos carregamentos humanitários. Nas quatro cidades há mais tempo sob cerco, Madaya, Zabadani, Fua e Kefraya, diz Egeland, vive-se “um desastre” com gente a morrer regularmente por falta de cuidados médicos.

Para os sírios era bom Astana poder ainda evitar que Idlib seja a nova Alepo e é muito por isso que os rebeldes voaram até ao Cazaquistão. Na cidade capital da província com o mesmo nome, para além das suas centenas de milhares de habitantes, estão 36 mil pessoas que fugiram de Alepo. Salvar Idlib do massacre de bombas que Alepo sofreu ou “de outra tempestade”, como disse Jan Egeland, é o que se pretende. “Idlib seria o símbolo se um lugar que pode ser salvo se este ano, 2017, se tornar no ano da diplomacia, depois de seis anos de fracassos diplomáticos.”

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