Os museus, o orçamento de Estado… e o resto

Pela primeira vez desde que existem estatísticas, os museus nacionais foram mais visitados por estrangeiros do que por portugueses – situação que deveria fazer tocar todas as campainhas de alarme e não ser quase que ignorada, em ambiente de “sempre em festa”.

Pela chamada “porta do cavalo”, ou seja, em sede de orçamento de Estado, foi aprovada mais uma reversão das políticas do Governo anterior, retomando-se a gratuitidade dos museus públicos em todos os domingos e dias feriados, até às 14 horas. Curiosamente, PSD e CDS votaram a favor desta proposta do PCP, que o BE acompanhou, ficando o PS isolado na sua rejeição.

Parece que esta medida causa engulhos, porque se prevê aplicar somente aos portugueses. Dizem-nos que talvez tenha de ser alargada a todos os cidadãos da UE – no que teria como consequência uma significativa perda de receita, somada a um porventura excessiva carga de visitantes em certos locais. Julgo que nenhuma destas objeções é verdadeiramente atendível: a receita perdida pode ser compensada de outras formas (lojas, serviços adicionais pagos, etc); o excesso de visitas, pelo estabelecimento de limites e marcação prévia, como já acontece em muitos monumentos e museus no estrangeiro. Mas reconheço que a promoção da visita por portugueses terá de ser incentivada através de medidas mais eficazes e estruturantes. Bastaria pensar estas matérias “fora da caixa” e ouvir quem “anda no terreno”. Por exemplo: o “cartão + cultura”, algo enigmático e potencialmente inútil que o programa deste governo contempla, poderia realmente ser tornado vantajoso se fosse usado para estabelecer discriminações positivas em função do IRS (desde a gratuitidade total até reduções variáveis de preços), sendo atribuído sob pedido dos cidadãos (sem qualquer intermediação de entidades patronais ou outras) em repartições de finanças e/ou autarquias locais. Não haveria aqui conflito com a legislação europeia porque não se trataria de medida universal; e alcançar-se-ia o principal objetivo de democratização que realmente se torna absolutamente imperioso e urgente.

Com efeito, os dados do INE sobre estatísticas culturais relativas a 2015, somados aos da DGPC [Direcção Geral do Património Cultural], relativos a 2016, acabados de divulgar, sublinham os efeitos muito perniciosos das políticas recentes sobre os museus. No caso do INE, em cujo universo se incluem todos os museus, ou seja, a grande maioria dos que se relacionam com comunidades locais e por isso resistem melhor à “crise”, as percentagens de visitantes nacionais têm vindo a decrescer, com o contraponto do aumento dos estrangeiros. No caso da DGPC, pela primeira vez desde que existem estatísticas, os museus nacionais foram mais visitados por estrangeiros do que por portugueses – situação que deveria fazer tocar todas as campainhas de alarme e não ser quase que ignorada, em ambiente de “sempre em festa”. A isto acresce a situação verdadeiramente catastrófica ocorrida com os públicos escolares: segundo os dados do INE (infelizmente a DGPC deixou se sentir-se obrigada a fornecer estatísticas detalhadas e por isso este valor não é conhecido), uma queda percentual a pique, apenas com ligeira recuperação em valores absolutos nos dois últimos anos.

Claro que a ampliação das margens de gratuitidade não resolve os problemas de fundo subjacente a menor visitação dos museus por portugueses e grupos escolares. Há que fazer muito mais. Os museus, pelo seu lado, têm procurado actuar, operando quase milagres. Os dados do INE são aqui mais uma vez elucidativos: não obstante as reduções de pessoal e de recursos financeiros, por vezes draconianas, a tendência dos últimos anos foi para o aumento das atividades (com a única exceção das remodelações de exposições permanentes), aumento especialmente notável precisamente nos dois domínios em que se verificaram maiores debilidades: acções com adultos e oficinas educativas. Donde se prova que esforçar-se, mesmo muito, não chega.

São necessárias políticas governativas mais amplas. Os museus devem ser verdadeiramente entendidos como aquilo que são: reservas de soberania e instrumentos de desenvolvimento social, mas também económico. Não é sequer necessário “inventar a pólvora” para saber o que tal significa em termos de políticas interministeriais. No caso das escolas, por exemplo, é preciso estabelecer ligações com a chamada “acção social escolar”, que deve incluir os museus no conjunto das suas ferramentas educativas; é ainda preciso recriar as condições que permitam aos professores retomar o hábito de levar os alunos aos museus – o que hoje é quase impossível (não apenas por questões financeiras, note-se, mas por toda uma burocracia criada e verdadeiramente infernizante). No caso dos grupos sociais mais desfavorecidos, é necessário instituir “pontes” de relação direta entre os museus e toda a rede pública (ou privada) de segurança e assistência social – o que pode ser suportado pela afectação aos museus de algumas verbas provenientes das lotarias (como acontece no Reino Unido, por exemplo). No caso da educação cívica mais ampla, é altura de reconhecer o impacte imenso dos museus e monumentos nos fluxos de visitação do país, nomeadamente turísticos, e daí retirar as consequências quanto à sua inserção nos planos estratégicos do sector e adequado financiamento no âmbito dos mesmos.

Políticas integradas de governação e planos, fazem falta, pois. Mas acima de tudo as palavras de ordem devem ser a de desburocratizar, requalificar e autonomizar. Voltaremos a elas em próxima oportunidade.

 

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