O grito da Brexitânia

À medida que se aproximam do solo, os defensores do "Brexit" vão pensando: até aqui está tudo bem.

A primeira-ministra britânica, Theresa May, chegou ao poder de uma forma bizarra. Na manhã a seguir ao referendo que deu a vitória à saída do Reino Unido da UE (o chamado “Brexit”), o primeiro-ministro David Cameron demitiu-se. O senhor que se seguia, Boris Johnson, grande vencedor do referendo, desistiu antes de avançar. Houve mais umas demissões pelo meio e finalmente desistiu também a única rival de Theresa May antes de um voto perante os delegados do partido conservador. Sem mais opções, as eleições foram canceladas e Theresa May entrou no número 10 de Downing Street, residência oficial da chefia do governo de sua majestade britânica. Sem um mandato político pessoal, Theresa May agarrou-se ao resultado do referendo e andou seis meses a repetir uma frase: “Brexit significa Brexit”.

Finalmente deu ontem um discurso para nos explicar o que é que “Brexit significa Brexit” significa.

A principal preocupação não-assumida do governo de Theresa May durante este período de indefinição foi buscar se haveria alguma hipótese de combinar restrições à imigração com o acesso ao mercado único da UE. Perante uma resposta negativa (invulgarmente coesa) dos outros 27 países da UE, o governo britânico parece ter entendido finalmente que as “quatro liberdades” (de circulação de bens, serviços, capitais e pessoas) são indivisíveis, e anunciou ontem a sua decisão: não havendo outra hipótese de impedir a imigração, quer sair do mercado único.

A lógica que guiou esta escolha não é a da racionalidade económica nem dos valores sociais, mas a da política partidária interna de Inglaterra e no máximo do País de Gales (uma vez que a Escócia e a Irlanda do Norte votaram por ficar na UE). Sem a legitimidade de uma eleição geral, Theresa May não pode escolher outro lado senão o dos extremistas do seu partido e da extrema-direita do UKIP — no primeiro caso porque os extremistas do seu partido são quem a segura no parlamento; no segundo caso, porque os agitadores do UKIP conseguiram infectar a opinião pública com a sua xenofobia viral. Onde Theresa May não está, certamente, é do lado dos trabalhadores britânicos, dos utentes do sistema nacional de saúde e menos ainda do lado dos europeus que vivem no Reino Unido. Theresa May abandona o mercado único para onde o seu país exporta metade das mercadorias, pondo em risco incontáveis postos de trabalho. Não há sinal de que queira cumprir a promessa de financiar o seu SNS, a braços com uma profunda crise e onde mais de 50 mil profissionais vêm de países da UE (incluindo seis mil portugueses). E os nossos concidadãos no Reino Unido vão ser os últimos a ver a sua situação esclarecida porque serão utilizados até ao último minuto como “capital negocial”, como dizem sem qualquer vergonha ministros do governo britânico.

Isto porque, apesar da ostensiva definição de ontem sobre o mercado único, Theresa May procura ainda um acordo à medida sobre a união aduaneira com a UE, sem a qual as peças de automóveis produzidas no Reino Unido ficarão à espera na fronteira, impedidas de poderem entrar nas linhas de montagem no continente. O estatuto dos europeus no Reino Unido servirá como ficha neste tabuleiro. Se não chegar, fica a ameaça velada que Theresa May deixou para o fim do seu discurso: transformar o Reino Unido num paraíso fiscal, nem que para isso tenha de acabar com o modelo social no país.

Estão assim claros os dois modelos de saída da União Europeia à disposição do Reino Unido. Na primeira versão, conservadorismo xenófobo. Na segunda versão, capitalismo selvagem.

O grito da Brexitânia não é, pois, nenhum grito do Ipiranga. É mais um daqueles gritos que se lançam ao saltar de um precipício. À medida que se aproximam do solo, os defensores do "Brexit" vão pensando: até aqui está tudo bem.

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