As sublimes distâncias de Rui Chafes

Uma nova individual, na Filomena Soares, mostra os trabalhos mais recentes do escultor:ainda, e sempre, um universo rude em que a matéria se torna forma inteligível em contacto com as forças brutas da natureza.

Fotogaleria
Na primeira sala, um núcleo de peças semelhantes a colunas acolha o visitante FOTO: RUI GAUDENCIO
Fotogaleria
Na primeira sala, um núcleo de peças semelhantes a colunas acolha o visitante
Fotogaleria
Na segunda sala, peças em bronze de pequenas dimensões, criadas a partir de moldes amassados à mão FOTO: RUI GAUDENCIO
Fotogaleria
Na segunda sala, peças em bronze de pequenas dimensões, criadas a partir de moldes amassados à mão FOTO: RUI GAUDENCIO

“Aquelas colunas são os restos de uma catedral que ardeu”, diz Rui Chafes com um sorriso, sabendo nós que nada do que ele produz é estritamente figurativo. Já esperávamos uma afirmação deste tipo, mas quando lhe perguntamos se, como tudo o que fez até agora, as obras incluídas neste Incêndio têm a ver com a ausência, diz que sim. Toda a obra de Rui Chafes é, de facto, uma obra sobre a ausência e sobre a consciência que temos dela.

Porque a mente é deste modo que funciona, o impulso primeiro do espectador será o de colmatar essa ausência com formas familiares. Neste caso, mencionaremos as colunas, é certo, como a catedral que ardeu – afinal, a escultura de Rui Chafes é habitualmente pintada de um negro antracite, muito semelhante à cor do carvão ardido; e quando não o é, como sucede na segunda série de obras incluídas na exposição, procurou-se com a iluminação obter uma tonalidade negra muito semelhante à dos primeiros trabalhos. De imediato recordamos outras peças do escultor que destacam a verticalidade associada a um contexto de arquitectura religosa, como sucedia com uma escultura que fez para a catedral de Lovaina, na Bélgica em 2004. Mesmo se conceptualmente não existe qualquer parentesco entre essa obra e este Incêndio, há alguma semelhança formal que deve ser acentuada. Até porque a escultura de Rui Chafes não conhece limites quanto à orientação espacial, e aproveita todos as conquistas que a modernidade soube levar a cabo para esta disciplina.

Temos falado aqui de primeira série e de segunda série. Na realidade, o título da exposição, Incêndio, é o título do núcleo de peças semelhantes a colunas que acolhem o visitante na primeira sala da galeria, uma sala bem iluminada, cheia de ruído que lhe entra pela janela, pela intrusão de obras do acervo da Filomena Soares que se apercebem no escritório ao fundo, pelas conversas dos outros espectadores que ecoam no espaço amplo. Rui Chafes dispôs estas esculturas em duas fiadas paralelas, exatamente como as colunatas que separavam a nave central das naves laterais nas catedrais góticas. Repleta de luz, com um tecto que assume as duas águas e que se apropria do travejamento tradicional nos edifícios do século XII, as peças elegantes e leves, todas distintas umas das outras – e repare-se que há oito numa fiada e apenas seis na outra – assemelham-se a esqueletos distorcidos depois de um acto destrutivo e violento que tudo eliminou do edifício original para apenas deixar estes vestígios.

Desequilíbrio

O artista está bem consciente de que existe um desequilíbrio entre o espaço de exposição e a leveza das peças. “Eu queria instalar um fundo musical na sala no dia da inauguração”, confessa, “uma peça de música atonal de preferência. Talvez Berg, ou Stockhausen, e porque não o Quarteto de Cordas para Helicóptero deste último?”. Na realidade, a música atonal, como toda a música modernista, acentua as sonoridades que se afastam decisivamente dos conceitos de harmonia, bom gosto e beleza herdados do barroco, classicismo, romantismo. Como não podia deixar de acontecer, o que se passa na música é de certo modo idêntico ao que sucede nas outras artes, que durante boa parte do século XX tentam quebrar com os códigos e os hábitos instituídos pela história. Mas Rui Chafes chegou à conclusão que tal não seria necessário: “Percebi que o ruído provocado pela conversa do público durante a inauguração já iria acentuar essa impureza que o espaço da galeria possui, e que as peças necessitavam. Não era preciso acrescentar mais nada, nenhum elemento sonoro.”

Foto
A escultura de Rui Chafes não conhece limites quanto à orientação espacial, e aproveita todos as conquistas que a modernidade soube levar a cabo para esta disciplina FOTO: DANIEL ROCHA

Numa outra sala da galeria, Chafes instalou a segunda série de peças presentes agrupadas sob o nome genérico de É assim que começa. São 11 peças em bronze de pequenas dimensões, todas elas criadas a partir de moldes amassados à mão. Dito de outra forma, trata-se de negativos de um gesto, ou de um material que ocupou o vazio criado pela mão no momento de um gesto. Neste sentido, são não apenas a cristalização dessa forma efémera que a mão adquiriu em certo momento, como a paragem do decurso do tempo e do seu efeito sobre um organismo vivo, sobre a vida.

Estas obras, ao contrário do que sucedia com Incêndio, são mostradas numa sala quase totalmente escurecida, dentro de uma vitrina pouco iluminada, como se se tratassem de objectos frágeis e facilmente adulteráveis ao contacto da luz. Rui Chafes conta que fez ele mesmo a vitrina onde se encontram, mas que os objectos serão depois vendidos dentro de uma caixa especial para os conter. Transportáveis, pequeníssimos, dão continuidade a uma outra série de peças muito semelhantes que o escultor foi criando entre 2004 e 2008, e que se chamava L’innomable feuille de... . Seis dessas peças estiveram mesmo presentes numa exposição que a Cinemateca Portuguesa realizou de homenagem a Robert Bresson, tendo então tomado o nome de Le Pickpocket – o nome de um dos filmes deste realizador, e nome predestinado, conta Rui Chafes, já que uma obra foi logo roubada no primeiro dia da dita exposição.

De certo modo, temos nesta exposição uma série de contrastes procurados, desejados, e de diversa ordem: entre a luz e a escuridão, a escala arquitectónica e a escala do objecto, a verticalidade e a disposição horizontal. Não existe um percurso pré-definido na exposição; tanto se pode começar por uma sala como pela outra, mas a leitura possível é sempre a mesma: uma escultura sobre o que vai desaparecendo sem nunca se extinguir por completo, ou o seu contrário. No fundo, uma obra sobre a própria história da escultura.

Num texto que acompanha Incêndio, o artista refere este devir sem fim para o nada que acaba por jamais se concretizar. E, dirigindo-se a um(a) interlocutor(a) ausente, diz: “A cada hora que passa me sinto mais longe dessa catedral inacabada que são os ossos sob a tua pele, o teu crânio, as órbitas sombrias dos teus olhos tão longínquos dos meus.” Se os ossos são a estrutura deste corpo que se torna sempre mais e mais distantes, o processo que Chafes procura aqui definir é um processo de reconstrução arqueológica. Não é por acaso que quase que reproduz a forma dos utensílios de pedra afeiçoada de tempos imemoriais – mas o artista diz que também podem ser sementes de alguma coisa -, e que as colunas negras e frágeis de Incêndio recordam as nervuras finíssimas das catedrais góticas – esses edifícios que deram o nome a um estilo que se pensava ser semelhante ao das bárbaras construções dos godos vindos do norte da Europa. A escultura de Rui Chafes, de facto, remete-nos sempre para este universo elementar, rude, em que a matéria se torna forma inteligível em contacto com as forças brutas da natureza. Ou, dito de outra forma, um universo anterior a toda a civilização, de que a contemporaneidade – e o trabalho deste escultor, que se insere nela – se distancia através da apropriação do conceito romântico do sublime.

E sobre esta escultura, com tudo o que ela convoca na memória colectiva que trazemos dentro de nós, paira sistematicamente o espectro da morte, da escuridão total. Recordamos a exposição que Rui Chafes fez neste mesmo espaço em 2013, intitulada Tranquila Ferida do Sim, Faca do Não, em que toda a galeria se encontrava praticamente às escuras. Ou ainda outra, em Coimbra, em 2015, inserida na bienal dessa cidade, em que ocupava, com Pedro Costa, o espaço em ruínas parcamente iluminadas do criptopórtico da cidade. Por agora, prefere falar da luz que banha, “como uma incubadora”. É assim que começa: uma luz suave, abandonada, o princípio de tudo.

Sugerir correcção
Comentar