Soares, Obama – e Trump

Ao longo de 2008 e até à primeira tomada de posse de Barack Obama, em 20 de Janeiro de 2009, Mário Soares multiplicou em artigos na imprensa as expressões de admiração e esperança que lhe suscitavam a personalidade do Presidente americano agora em vésperas de ceder o lugar a Donald Trump. “Acho que a vitória de Obama — escrevia a 21 de Janeiro de 2009 — representa, por si só, uma revolução democrática e pacífica nos Estados Unidos e, principalmente, uma mudança nas mentalidades dos americanos.” Que pensaria Soares sobre o legado deixado por Obama oito anos depois desses tempos auspiciosos e o significado da sua substituição por Trump?

É uma questão que poderíamos pôr a nós mesmos — aos muitos milhões de pessoas que, por esse mundo fora, se deixaram empolgar pela mensagem vibrante do primeiro Presidente afro-americano, único sinal de luz numa época de recessão profunda da economia americana e global, provocada pela deriva do capitalismo financeiro e especulativo (que era, aliás, um dos alvos obsessivos de Soares, além do neoliberalismo, a “terceira via”, ou a falta de rumo da União Europeia).

Obama impediu a queda no abismo dos Estados Unidos, favorecendo a recuperação económica americana, levou a efeito uma reforma ambiciosa do sistema de saúde e registou alguns sucessos notáveis na frente externa, como o tratado com o Irão sobre o nuclear, o fim do embargo a Cuba ou o Acordo de Paris sobre o aquecimento global. Mas a verdade é que tudo isto, sendo muito, acaba por parecer frustrante face às desmesuradas expectativas suscitadas pelo verbo empolgante de Obama, se pusermos no outro prato da balança o agravamento dos conflitos internacionais e a impotência americana para os enfrentar (em particular no Médio Oriente, deixando ultrapassar as “linhas vermelhas” na Síria e assistindo sem capacidade de reacção à arrogância imperial de Putin).

Obama teve de navegar, sobretudo no segundo mandato, contra os obstáculos cada vez maiores levantados pela maioria republicana no Congresso, mas isso não o absolve da sua postura excessivamente cool e do acomodamento aos compromissos que minaram a sua vontade reformadora, estimulando a agressividade de uma direita lançada num radicalismo desenfreado. Foi assim que, embora tendo terminado o seu segundo mandato com uma assinalável taxa de popularidade, Obama acabou por confrontar-se com o maior fracasso de todos e uma ameaça mortífera ao seu legado: a eleição de Trump. Não há na moderna história americana — e porventura mundial — uma convulsão de tamanhas proporções.

Que diria Soares? Provavelmente, como tantos de nós, que a sua desmedida esperança em Obama acabou por ter um sabor amargo e que este ano de 2017, em que ele nos deixou, se anuncia ainda mais terrível do que o de 2008, quando havia pelo menos essa esperança no horizonte. Imagino Soares estupefacto e aterrado com a perspectiva de uma presidência Trump — “um louco perigoso!” —, sobretudo depois de conhecer os últimos episódios antes da sua entrada na Casa Branca. Afinal, o pior é sempre possível, apesar do infatigável optimismo histórico de Mário Soares e da sua crença irredutível, não obstante todas as desilusões, na regeneração do mundo.

Não é apenas aterrador, como também parece escapar à razão que a maior potência mundial venha a ser governada por alguém que não distingue as fronteiras entre os seus negócios privados e os interesses do Estado, com uma equipa cujos membros dizem o contrário do que ele próprio vem insistentemente proclamando (seja sobre as relações com a Rússia, o nuclear iraniano ou o muro com o México), e se mostra de todo incapaz de argumentar racionalmente e ver o efeito boomerang da pós-verdade por ele cultivada. O mundo da pós-verdade é, de facto, um mundo pós-Mário Soares.

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