Donald Trump, negócios e alianças

Os negócios não substituem os aliados e tweets furiosos não restauram o poder e o prestígio.

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1. Nunca nos tempos modernos um candidato venceu as presidenciais americanas com um programa tão vago como o de Donald Trump. E raros terão suscitado tanta preocupação a nível internacional. Que será a política America First? Nas primeiras audiências no Senado, os ministros por ele escolhidos divergiram e deram a ideia de uma teia de contradições e de nenhuma estratégia desenhada. Um dos temas quentes é a questão das alianças e a própria concepção da política externa. Ninguém sabe ao certo o que Trump fará, uma vez instalado na Casa Branca.

A campanha de Trump espalhou incerteza e insegurança, designadamente na Ásia e na Europa, onde a maior potência do mundo surge como imprevisível e não fiável. Durante a transição, Trump mudou ligeiramente de tom, o que o não impediu de lançar um tweet “assassino” sobre os serviços secretos americanos: “Estamos a viver na Alemanha nazi?” A CIA paga os seus erros sobre Saddam Hussein. Mas que chefe de Estado se dá ao luxo de descredibilizar um dos instrumentos básicos da sua política externa e de segurança — a informação?

“Com este homem entramos em território desconhecido”, diz Elaine Karmack, da Brookings Institution. “O mais interessante será ver se Trump dará atenção ao que o seu Governo [pensa fazer].”

2. Dois exemplos do que se ouviu no Senado. Rex Tillerson, indigitado para o Departamento de Estado, evitou responder às perguntas mais embaraçosas, por precisar de conhecer “mais factos”, e procurou manter-se alinhado pelas promessas de Trump. Mas reconheceu que a espionagem russa durante a campanha não poderia ter sido feita sem a aprovação de Vladimir Putin, condenou a invasão da Crimeia, defendeu a manutenção das sanções à Rússia, apesar de prejudicarem a economia americana. Deu a entender que a Rússia é a sua prioridade diplomática. Foi agressivo em relação à China, o que provocou um azedo aviso de Pequim. Contornou a questão da NATO, centrando-se na exigência de os aliados investirem mais na Defesa. Quanto ao Irão, quer rever “profundamente” o acordo sobre o nuclear. Não discorda do Acordo Trans-Pacífico (TPP) que o Presidente eleito prometeu denunciar. Reconheceu ainda a importância das questões ambientais que Trump despreza.

O general James Mattis, escolhido para a Defesa, fez lembrar um “anti-Trump”. Sublinhou a rigorosa fidelidade às alianças: “As nações com fortes aliados prosperam, as que os não têm declinam.” Afirmou que o objectivo de Putin “é tentar romper a Aliança Atlântica”. Condenou em “absoluto” a tortura e defendeu o cumprimento do acordo nuclear com o Irão.

3. Um terceiro exemplo dos dilemas que atravessam Washington. Thomas Graham, antigo diplomata e especialista na Rússia, que fez parte do staff de George W. Bush e é director da Kissinger Associates (consultoria internacional), tem sido apontado como um dos nomes possíveis para embaixador em Moscovo. Não está eufórico com o rumo das coisas. Disse ao The Washington Post: “Compreenderá Trump que as negociações com a Rússia têm de ser feitas numa posição de força? Isto significa que precisa de ter os aliados por trás de si. Estará Trump tão enamorado de Putin que pense que basta sentar-se à sua frente e ter uma conversa, ou deverá fazer como os outros presidentes? Deveria ir vê-lo no fim de uma viagem à Europa, onde falaria com os aliados, estipulando como vai negociar com ele. Para dizer a Putin: estamos preparados para ter em conta os seus interesses, mas precisamos de que tenha em conta os nossos.”

4. A diplomacia clássica parece muito longe da “diplomacia do negócio” (transactional diplomacy) preconizada por Trump. Anota a revista The National Interest: “Ao contrário dos negócios internacionais, a política externa e a segurança nacional envolvem questões de guerra e paz e, por extensão, de vida e morte.”

Trump e Tillerson, homens de negócios, partilham da moda da política “transacional” ou contratual. Em lugar de se fundarem em instituições, princípios e alianças estáveis, preferem os acordos ad hoc e temporários. “É o método do business aplicado à diplomacia”, resume a analista italiana Marta Dassù. “O deal com um adversário — a Rússia de Putin — pode ter prioridade sobre a defesa de um aliado. Contam os interesses próprios americanos; e conta menos a salvaguarda geral do sistema ocidental, com os seus valores liberais e as instituições multilaterais.” O Ocidente contemporâneo assenta nos compromissos americanos de defesa dos seus aliados. Ou seja: sem liderança americana a noção de Ocidente arrisca-se a perder o sentido.

5. A conclusão das ideias que Trump defendeu na campanha já produziram um efeito: “As garantias americanas deixaram de ser fiáveis”, resume Mark Leonard, director do European Council on Foreign Relations.

A promessa de uma linha dura em relação à China é uma política arriscada. Como único potencial candidato a disputar aos Estados Unidos a hegemonia regional, Pequim dispõe de meios de retaliação perante Washington — não é apenas uma “grande fábrica” exportadora, detém uma grande parte da dívida americana.

A política americana tem consistido em conter a hegemonia chinesa no Pacífico. Este é o verdadeiro tabuleiro do “grande jogo” no Extremo-Oriente. O acordo comercial TPP era um dos instrumentos dessa política. A perda de confiança nas garantias americanas pode ter efeitos traumáticos no Japão e na Coreia do Sul, acelerando a corrida aos armamentos. E ter ainda outro efeito perverso: a tentação de aproximação à China por vários países do Sueste Asiático, como as Filipinas e a Tailândia.

Acrescento uma nota cáustica de Stephen Walt, da escola “realista” americana: “Negociar com a China eficazmente exige resolução, julgamento ponderado, uma diplomacia inteligente e consistente perante os vizinhos e um paciente trabalho preparatório. É uma tarefa para profissionais experientes, e não para amadores bombásticos viciados no Twiter.”

6. Se Trump conseguir realizar a sua política russa, a primeira “baixa” será a Europa: ficará marginalizada. Tenderá a dividir-se. Moscovo não apenas tentará restaurar a sua “esfera de influência” nos países da antiga URSS como tentará ser um actor influente na Europa Central e Oriental.

Os próximos anos são perigosos. A começar por 2017, com o insolúvel problema da imigração, o “Brexit”, a vaga populista e eleições na França e na Alemanha. As capitais europeias tendem a dividir-se sobre a política russa. Estará Putin presente nestas campanhas eleitorais?

Enfim, a moeda tem um reverso. “Os ‘negócios’ [deals] não substituem os aliados e tweets furiosos não restauram o poder e o prestígio”, conclui o analista Philip Stephens no Financial Times. E pode acabar por se voltar contra os próprios Estados Unidos: “America First parece-se muito com America Alone.” 

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