Exaltar o quotidiano

Islands: Non-Places é uma obra curta, mas que nos faz reparar em vários cenários do quotidiano; que nos faz consciencializar de quem somos e de com quem convivemos em alguns dos mais ignorados panos de fundo.

Islands: Non-Places

O mesmo local quotidiano pode ser um inferno e um paraíso. Como se fosse aquilo que lá vivemos que o mudasse perante os nossos olhos, perante a memória transfigurada que fazemos dele: uma namorada que chega a uma estação de comboios para vir morar na nossa vida; um namorado que acaba uma relação numa estação de comboios. No quiosque, os jornais são vendidos com o avançar do calendário, há uma pastelaria com natas copiadas diariamente, há canteiros com os mesmos fetos, linhas que trazem e levam destinos. A estação é o meu paraíso, o vosso inferno, o meu inferno, a vossa indiferença.

Há um videojogo sobre locais que no centro de tudo são os cantos desfocados da vossa visão, são os cenários cinzentos de vidas focadas no colorido. Podem ter passado por eles hoje, podem estar com um desses lugares à vossa volta enquanto lêem este texto. Islands: Non-Places obriga-nos a reparar nesses cenários, apresentando-os de uma forma memorável por intermédio de acções que os sublinham e deformam enquanto são jogados.

São dez “ilhas” digitais que vão passando pelo ecrã à espera de serem descobertas. Carl Burton, autor do videojogo, não foi inocente a chamar-lhe Non-Places, um título cheio de ironia e de segundos significados. E Burton, que chegou a assinar ilustrações para o The New York Times, por exemplo, sabe bem que tem em mãos uma obra de auteur, uma obra que tem o seu toque de uma ponta à outra, capaz de fazer quem joga reconhecer uma das suas restantes obras sem precisar de ver a sua assinatura.

Estamos, para evitar equívocos, a falar de um videojogo que se orgulha de ser surreal, um sonho febril. Logo no início, ainda enquanto estamos a aprender os seus processos básicos, somos contemplados com uma paragem de autocarro. Jogando-o num iPhone, diz-me o senso para pressionar os pontos luminosos. Chega um autocarro que abre a porta para deixar sair ovos. Sim, é um autocarro que transporta ovos, brincando com uma das situações do quotidiano, querendo dizer que somos frágeis ou que num autocarro perdemos todos a nossa identidade. Pode um videojogo mudar a maneira como olhamos para locais que sabemos de cor?

Mais à frente, há um frigorífico com uma porta para abrir, há também o som de uma caixa registadora, o som de pessoas a falar sobre pessoas a falar, latas a abrir, como se o tema do consumismo fosse trazido para a linha da frente, como se quem joga fosse repentinamente relembrado de um acto que faz sem pensar muito, talvez sem pensar o devido. E, ironicamente, conforme vamos tocando com o dedo nos objectos em destaque, vamos fazendo música, um ritmo pelo menos.

Islands: Non-Places parece ser sempre o último degrau antes da consciencialização do que nos rodeia e do que fazemos em estado quase autónomo. Há as passagens pelos centros comerciais e pelo levantamento da bagagem num aeroporto, o levantamento de dinheiro numa qualquer caixa automática. A aposta de Burton é em nunca se colocar nas pontas dos pés e em gritar para fazer passar a sua mensagem, para fazer a sua voz ouvir-se e ecoar dentro de cada um, porque a unidade que experimenta o jogo já terá passado por vários destes locais, já terá em consciência aquilo que o videojogo simplesmente se limita a trazer à tona.

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Num dos locais mais complexos somos levados à condição de voyeur. Alguém chega a casa no seu automóvel e temos que, graças à mecânica de pressionar os pontos luminosos, testemunhar a sua simples instalação em casa. Lava os dentes, vê televisão, vai dormir, tudo depois de ter deixado o carro na garagem. A obra não se escusa a mostrar o que poderá ser entendido como a repetição do processo, indicando a sua monotonia, o transparecer que estamos quase máquinas genéricas que anseiam colocar a cabeça no travesseiro – passando por vários canais de televisão que debitam ruído branco, que muitos querem indecifrável.

Como é uma dezena de cenas, começam a desenhar-se duas linhas de vontade no cérebro: até onde nos levará cada uma delas e qual será a próxima. O choque do mundano com o bizarro, o que nos desafia, ou melhor, o que desafia o sentido convencional que estamos habituados a dar a locais de passagem faz com que entremos na próxima cena deslumbrados e com um pé atrás, capazes de antecipar mais uma passagem por algo que conhecemos e desconhecemos, tal como se olhássemos um quadro que reconhecemos, mas que é pintado à nossa frente com processos antagónicos aos que as exposições nos formataram o reconhecimento.

Usando cores fortes, texturas opacas garridas, o departamento técnico não se ensaia para se firmar na nossa memória. Vemos palmeiras a subir escadas rolantes, os pormenores sonoros ficam-se nos tímpanos enquanto desesperadamente tentamos perceber qual é a mensagem. Os cenários deslocam-se com a ponta dos dedos, esquerda-esquerda-esquerda e vimos algum ponto de interesse e rodamos novamente direita-direita à procura de algo que nos possa ter escapado: queremos absorver tudo sensorial como a pele absorve um penso de nicotina.

O grafismo, então, reflecte a identidade de Burton. Se forem apelidados de níveis, o último de Non-Places faz-me lembrar a antena final de Dear Esther. Porém, aqui a câmara eleva-se para mostrar a mistura do orgânico e do eléctrico, a mensagem que é enviada pelo jogo como a mensagem que é enviada além do jogo. O jogo liberta-se de um casulo surreal, deixando para trás o pensamento em quem o experimentou. E, mesmo que tenha compreendido uma mensagem ao lado da que estava no pensamento do criador, vale na mesma o discernimento, o início de algo encadeado.

É preciso estar disponível para absorver Islands, para pensar além do que é mostrado no ecrã. Contudo, impera mencionar as suas falhas. Por muito bom que seja a embalar linhas de pensamento perdido na contemplação do quotidiano, é uma proposta muito curta. Não terão dificuldade nenhuma em chegar ao final em menos de uma hora. E é um preço que custa mais a pagar quando facilmente percebemos que esta excentricidade sustentada em formato de videojogo tinha pano para o dobro das mangas.

Além da curta longevidade, nota-se que a jogabilidade é pouco mais que um enfeite. Pressionar os pontos de interesse acaba por ser algo que varia entre o gatilho da continuidade narrativa visual e o banal, ocasionalmente sendo confuso, ocasionalmente sendo um exercício que faz tanto para se afastar da mensagem a passar que acaba por se afastar quase completamente do cerne do jogo. Isto não é necessariamente mau, mas acaba por carimbar inequivocamente Islands como um jogo que não é para todos, não é uma obra que obedeça ao cânone do disparar ou do fintar ou do pontuar ou do provar algo.

Um carro estacionou aqui perto há uns dias e eu pensei que alguém poderia estar perto apenas de fazer reset ao dia, recomeçando amanhã, porque o amanhã está sempre assegurado até não estar; estava numa paragem de autocarro e lembrei-me que poderiam ser ovos sentados à janela, que eu poderia ser um ovo a sair pela porta da retaguarda dali a alguns minutos; se usar escadas rolantes nos próximos tempos, é provável que me lembre de palmeiras. Tudo isto é o mesmo que dizer que Islands ganhou. Não é o jogo do ano, não, mas é um jogo que assimila o quotidiano, nem que seja apenas por quarenta minutos, e o apresenta com um asterisco. E esse asterisco é um novo olhar sobre o cenário disto a que vamos chamando viver.

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