Merkel no centro do centro: o futuro da Europa está nas suas mãos

Bastou o aumento da inflação na Alemanha (1,7 por cento), para subirem os juros da dívida em Lisboa. A inflação vai levar Berlim a pressionar ainda mais o BCE para que reduza o programa de compra de dívida e de activos dos países mais vulneráveis, deixando-os mais desprotegidos perante os mercados.

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1. Angela Merkel, confirmando a esperança de muita gente, soube mais uma vez reagir com ponderação e com coragem ao brutal ataque terrorista contra um mercado de Natal em Berlim, no dia 19 de Dezembro. Não apelou à “guerra contra o terror”, na senda de George W. Bush, depois do 11 de Setembro, ou de François Hollande, após os atentados de Paris. Procurou imediatamente separar o terrorismo dos refugiados, não cedendo mais uma vez ao discurso contra a sua política de portas abertas, mesmo correndo o risco de uma fractura com o partido-irmão da CDU, a CSU da Baviera. Na sua mensagem de Ano Novo, escreve o site Politico-Europa, “apelou à compaixão face à ameaça do terror”. “Quando olhamos para as imagens das bombas em Alepo, temos de dizer mais uma vez quão importante foi para nós ter ajudado os que precisavam da nossa protecção a encontrar o caminho até cá e a integrar-se.” A sua mensagem de Ano Novo centrou-se na Europa e não, como escreve Judy Dempsey do Carnegi, “em Vladimir Putin ou em Donald Trump”. “Muita gente associa 2016 com o sentimento de que o mundo inteiro está a cair aos bocados ou que algumas realidades que eram consideradas como dados adquiridos estão agora a ser postas em causa”, incluindo a própria União Europeia, disse a chanceler, referindo igualmente o ataque à democracia liberal como um sistema que não resolve nada. A sua conclusão: “Que imagem distorcida”.

2.“Olhamos cada vez mais para a Alemanha como o centro estável e liberal da Europa”, escreve no Guardian o historiador britânico Timmothy Garton Ash. “O centro deste centro chama-se Angela Merkel”. A tarefa da chanceler não será fácil, não a conseguirá levar a cabo sozinha, nem o seu êxito está garantido à partida. Vai disputar o seu quarto mandato (Setembro deste ano) em condições que lhe são bastante mais adversas, precisamente porque aconteceu aquilo que ela mais temia: a emergência de um partido de extrema-direita que está a ganhar votos rapidamente, em boa medida à custa dos refugiados. A Alternativa para a Alemanha chamou às vítimas do atentado em Berlim “os mortos de Merkel”. Não há, é verdade, nenhuma figura política à esquerda ou à direita que, por enquanto, lhe faça sombra. A questão não é tanto saber se ganha as eleições mas com que margem. Os seus parceiros de coligação do SPD não conseguem descolar de um resultado que as sondagens prevêem à volta de 20 por cento, que se mantém teimosamente desde a saída de Gerhard Schroeder (2005). Precisam de demarcar-se da chanceler para encontrar algum espaço eleitoral mas isso não é fácil nem é óbvio. Seria escandaloso que se juntassem ao coro dos que são contra a entrada dos refugiados. Deixaram-se colar demasiado à chanceler em matéria de gestão do euro e da economia europeia, porque a política europeia da chanceler tinha um apoio generalizado entre os alemães. O que vão fazer é ainda algo difuso. A tentação maior é apostarem no desgaste de Merkel, abrindo as portas a uma coligação de esquerda, incluindo o De Link, o que não seria nada saudável do ponto de vista da centralidade de Berlim numa Europa que deve fazer frente a Putin e responsabilizar-se cada vez mais pela sua própria segurança.

3.Falta, por ventura, à chanceler uma visão global do que deve ser o futuro da Europa, na defesa dos seus valores mas também na capacidade de manter-se unida. A crise do euro ainda não está superada. A união bancária ainda não está concluída. A zona euro continua dividida ao meio, entre os que ganham e os que perdem. O problema é que a chanceler já não quer voltar à crise do euro. As regras estão definidas e agora há que cumpri-las. Não é a única. A maioria dos países do Norte pensa da mesma maneira. O problema é que não é assim. Bastou o aumento da inflação na Alemanha (1,7 por cento), para subirem os juros da dívida em Lisboa. A inflação vai levar Berlim a pressionar ainda mais o BCE para que reduza o programa de compra de dívida e de activos dos países mais vulneráveis, deixando-os mais desprotegidos perante os mercados. E toda a gente sabe como os alemães são susceptíveis a qualquer ligeiro sinal de aumento dos preços, não porque isso tenha problemas hoje em dia, mas graças ao trauma da República de Weimar. O problema é sempre o mesmo. Se aquilo que mais convém à economia alemã prevalecer sistematicamente sobre aquilo que convém às economias mais frágeis, as divisões vão persistir ao ritmo das dificuldades que muitos desses países continuam a enfrentar. As políticas de crescimento não chegam para animar o suficiente a economia europeia, enquanto estiver sob o espartilho do Tratado Orçamental. As decisões comuns sobre o sistema bancário e sobre a questão da dívida ainda estão muito longe encontrar uma solução estável e benéfica para toda a gente e não apenas para alguns, garantindo que os mercados deixem de apostar na desagregação da zona euro. E o pior é que vai ser preciso esperar pelas eleições alemãs (se não houver nenhum terramoto anterior em França ou na Holanda), antes que alguma coisa possa mudar.

4. Em Portugal, esse é certamente o maior problema que o Governo socialista enfrenta neste ano que começa. Com a agravante de dar espaço ao Bloco e ao PCP para ocuparem o silêncio com a reivindicação de políticas incompatíveis com o estatuto europeu do país. O PCP vai ao ponto de exigir a saída do euro e da União Europeia, coisa que defende desde sempre mas que muitas vezes preferiu silenciar, sobretudo no tempo em que a Europa era vista pela maioria dos portugueses como um maná de dinheiro. O mesmo fará o Bloco, mas por outra via: a reivindicação da renegociação da dívida, questão central para a qual ainda não há abertura em Berlim ou em Bruxelas.

5. Resta ainda que a Europa tem um gigantesco problema pela frente, que se chama Donald Trump, um cenário que nunca sequer quis considerar. Os enviados de Berlim ou de Paris a Washington para entrar em contacto com a equipa de Trump vieram praticamente de mãos a abanar. As decisões económicas do futuro Presidente, mesmo que erráticas, terão um impacte enorme sobre a economia global, tal é o peso da economia americana ainda hoje no mundo. A decisão da Ford de não levar por diante a sua nova fábrica no México, abrindo-a no Michigan, é um pequeno aviso do que pode vir por aí. A integração do México na NAFTA (1994) abriu a sua economia à competição externa e transformou radicalmente a sua indústria automóvel, hoje muito mais competitiva graças ao investimento estrangeiro. Na cidade onde estava prevista a nova fábrica da Ford o efeito será brutal, multiplicado pelas empresas mexicanas que forneceriam serviços à Ford. São milhares e milhares de empregos perdidos, embora os 700 empregos ganhos nos EUA não tenham um grande impacte. De há muito que a manufactura representa pouco mais de 10 por cento do PIB, nem ninguém espera que regresse aos valores de um passado que já é longínquo. Em contrapartida, Trump vai perceber ainda melhor a utilidade do muro na fronteira com o México, porque a “America  First” dos automóveis terá como primeira consequência o aumento da imigração clandestina. A globalização não se rebobina sem custos muito elevados e sem consequências geopolíticas, que não se limitarão ao México.

A Europa é uma economia aberta e fortemente exportadora (a começar pela Alemanha). Será inevitavelmente castigada se Trump seguir por esta via. Uma nova recessão ou a incapacidade para apostar em políticas expansionistas que contrariem este efeito, seriam provavelmente fatais para a zona euro, tal como ela hoje existe. Merkel é o “centro do centro” de uma ordem democrática e liberal europeia que não queremos que caia. Mas, para que não caia, será preciso que a União Europeia consiga de algum modo superar esta profunda divisão entre quem ganha e quem perde. Resta saber se a chanceler tem a coragem e a lucidez necessárias para perceber que a Europa ou se salva em conjunto ou não se salva. 

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