Kallon jogou no Kallon, mandou no Kallon e despediu Kallon

O melhor futebolista da história da Serra Leoa comprou um clube no seu país, onde acabou a carreira, e rebaptizou-o com o seu nome.

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Kallon viveu os seus melhores momentos no Inter Milão Stefano Rellandini/Reuters

A Serra Leoa não é e nunca foi uma potência do futebol africano. Não vai estar na próxima edição da Taça das Nações Africanas (CAN), que se inicia a 14 de Janeiro no Gabão, e apenas participou por duas vezes no torneio – ficou pela fase de grupos em ambas. Num país tristemente conhecido pela sangrenta guerra civil entre 1991 e 2002, pelas crianças-soldado e pelos diamantes de sangue, o futebol nacional poucas vezes foi um motivo tão grande de orgulho como quando um miúdo de 15 anos, seis meses e 18 dias, marcou um golo num jogo oficial da selecção nacional a 22 de Abril de 1995. Aqui começou a longa história de Mohamed Kallon, o melhor jogador da história da Serra Leoa, que passou por 15 clubes em nove países diferentes.

O avançado africano terminou a carreira em Março do ano passado, com 36 anos, ao serviço do FC Kallon, de Freetown. O nome do clube não é coincidência. Em 2002, o avançado comprou um clube do seu país por 30 mil dólares (pagou em dinheiro) e mudou-lhe o nome. Mais tarde, quando o futebol europeu deixou de ter lugar para ele, passou a ser presidente-jogador, com uma breve passagem pelo futebol chinês pelo meio – amanhã haverá outro presidente-jogador, o médio argentino Juán Sebastian Verón, que, aos 42 anos, vai voltar a jogar pelo Estudiantes de la Plata, clube a que preside desde 2014. Nesta dupla função, Kallon chegou mesmo a despedir um dos irmãos mais velhos, Musa (também um antigo internacional), que foi o treinador do FC Kallon mais que uma vez.

Mohamed Kallon nunca ficou tempo suficiente em lado nenhum. Aos 15 anos já tinha saído do seu país em guerra para ir jogar para o Líbano, e, aos 16, já estava na Suécia, e já tinha jogado (e marcado) numa CAN. O seu talento precoce chamou a atenção do Inter de Milão, que o contratou, mas esta era uma altura em que cada equipa italiana só podia ter três jogadores estrangeiros e demorou muito até que o jovem Kallon jogasse, de facto, com a camisola dos “nerazzurri”. Esteve sete anos emprestado, primeiro a um clube suíço e depois a cinco clubes italianos diferentes antes de se fixar no Inter.

Consistência nunca foi uma palavra que se associasse a Kallon. Na primeira época, com Hector Cúper, conseguiu ganhar o seu espaço numa equipa que tinha dois dos melhores avançados da altura, Christian Vieri e Ronaldo “Fenómeno” (também estava lá um jovem Adriano, que foi emprestado a meio da época). Marcou dois golos logo no primeiro jogo da época e acabou como o segundo melhor artilheiro da equipa, mas o seu rendimento caiu muito nas duas épocas seguintes – na terceira e última época no Inter esteve oito meses suspenso por doping e praticamente não jogou. De Milão foi em 2004 para o Mónaco vice-campeão europeu, derrotado na final pelo FC Porto, e marcou bastantes golos, mas não o suficiente para se fixar no principado. Ainda voltaria a Monte Carlo, mas com pouco sucesso.

Andou pela Grécia, Arábia Saudita e Emiratos Árabes Unidos antes de ir para aquele que era, literalmente, o seu clube. China e Índia foram destinos de curta duração neste período final da carreira. Kallon regressou sempre a casa. Ainda tentou ser presidente da federação do seu país, mas foi impedido de ir a votos – esta decisão motivou mesmo uma greve de grande parte das equipas do principal campeonato do país. Agora, a acreditar no que disse quando anunciou a retirada, Kallon talvez passe a presidente-treinador: “É a altura certa para pendurar as botas. Ainda não decidi o que vou fazer a seguir. Quero estar com a minha família. Depois, quero preparar-me bem para fazer o curso de treinador.”

* Planisférico é uma rubrica semanal sobre histórias de futebol e campeonatos periféricos

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