Da vida dos surrealistas

Filmes que são como arquivos, arquivos de rostos, vozes, histórias, documentos: Cruzeiro Seixas, As Cartas do Rei Artur, de Cláudia Rita Oliveira; Mário Cesariny, Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes.

A energia da presença de Cruzeiro Seixas
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Autografia: uma longa performance de Cesariny
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Filmes que são como arquivos, arquivos de rostos, vozes, histórias, documentos. Aspectos em comum (mas não os únicos) entre As Cartas do Rei Artur, de Cláudia Rita Oliveira, sobre a figura de Artur Cruzeiro Seixas, recém-apresentado na última edição do DocLisboa, e o mais antigo e agora recuperado (em versão “restaurada”, ligeiramente modificada) Autografia, de Miguel Gonçalves Mendes, que tem Mário Cesariny de Vasconcelos no seu centro. Que é a outra coisa que os irmana, sendo Cruzeiro Seixas e Cesariny personagens paralelas e em relação permanente – ocupando essa relação muito do espaço de As Cartas do Rei Artur, que até vai buscar o seu nome à correspondência, amplamente citada e documentada, entre os dois pintores e poetas, nomes maiores do movimento surrealista português. E num momento de As Cartas Cruzeiro Seixas é posto perante as imagens de Cesariny em Autografia, numa espécie de reencontro “fantasmático” que tem bastante de comovente e que, literalmente, põe um filme a olhar para o outro.

Mais convencional no seu manejo dos trâmites do “documentário de personalidade”, As Cartas do Rei Artur tira a sua energia da presença de Cruzeiro Seixas (a falar para a câmara ou em cenas dum dia a dia a que não faltam as cerimónias e as homenagens), e do seu confronto com a memória, seja a memória pessoal dele seja a memória “material”, a enorme quantidade de documentos, de todo o tipo (textos, fotos, desenhos, registos filmados) que Cláudia Rita reúne. “Não vivi, mas deixarei muitos documentos deste não-viver” – frase exagerada, mesmo “poeticamente”, que Cruzeiro Seixas profere logo no início do filme (e “exagerada” porque tudo nele é manifestação de uma viva vivida), mas que serviria muito bem como epígrafe de As Cartas do Rei Artur, porque afinal de contas o filme é, ele próprio, mais um desses “documentos” do “não-viver”. E ser documento, ser arquivo, é a sua principal virtude.

Como era, e agora tantos anos depois se salienta melhor, Autografia, um filme que Miguel Gonçalves Mendes conquistou à intimidade doméstica de Cesariny. E sendo um “documento”, é também uma longa performance de Cesariny, que em certos momentos se comporta como um actor em teatro para a câmara, e uma singularmente pudica aproximação à (auto-)biografia. Tantos anos depois, continua a parecer aquilo que Gonçalves Mendes acertou melhor: colocar-se naquele espaço bastante exíguo entre a exposição e a reserva, entre o explícito e o implícito, entre a memória material de uma vida (a casa de Cesariny, os objectos nela espalhados) e a memória mais evanescente, aflorada com especial poder nas cenas mais comoventes do filme, as da conversa entre Cesariny e a sua irmã.

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