O Presidente anda a pedir milagres ao Governo

O Presidente quer que o Governo vire a página ao “virar da página da austeridade” e pede um novo tempo ao “tempo novo”. No actual quadro parlamentar, uma política a favor do crescimento vai exigir um milagre político maior do que o de 2016

Os jornalistas adoram descobrir os destinatários das mensagens presidenciais. O exercício com o Presidente-rei Marcelo estava a ser particularmente enfadonho – a sua sibilina argúcia tende a distribuir recados por todos para que todos se sintam contentes. No caso da mensagem de Ano Novo, porém, houve uma pequena subtileza. Marcelo elogiou António Costa e não elogiou Passos ou Assunção Cristas, mas, no seu jeito manso de ser, aproveitou o elogio como lastro para dizer ao país que o Governo tem de se deixar de fintas e chutar à baliza. Dizer a um Governo em estado de graça que está na hora de deixar de flutuar no ar é mais do que um apelo: é também uma repreensão. A “estabilidade política e social” de 2016 é óptima, o diabo anunciado por Passos Coelho só azeda o “ambiente dos debates entre os políticos”, mas, desta vez, para lá do seu proverbial ecumenismo, o Presidente-rei preocupou-se principalmente em dar recados ao Governo. Mais: fê-lo com argumentos do PSD.

Disse Marcelo Rebelo de Sousa que “2016 foi o ano da gestão do imediato, da estabilização política e da preocupação com o rigor financeiro”; no dia seguinte, Passos Coelho escrevia no PÚBLICO que o Governo vivia num irrealismo que o impedia de procurar “soluções robustas, que fujam a encenações enganosas”. Marcelo dizia na sua mensagem que 2017 tem de ser o ano “da gestão a prazo e do crescimento económico”; dois dias depois, Passos Coelho sublinhava que o país carece de uma “agenda de reforma económica e social que [traga] mais confiança e investimento produtivo”. Não se sabe se o almoço da passada semana entre o Presidente e Passos Coelho teve direito a brinde, mas o que é facto é que o ano começa com sintonia entre os dois.

O discurso de Marcelo Rebelo de Sousa não foi em si mesmo um momento de grandes novidades, mas a ênfase na economia e na visão a prazo do país colocam a acção do Governo sob uma nova perspectiva. Afinal, o Presidente constrói uma narrativa que culmina na necessidade de um virar de página à farsa do “virar de página da austeridade”. Exige ao Governo uma agenda que abra um tempo novo no “tempo novo”. Acabada a temporada da sobrevivência no quadro de um apoio parlamentar instável, cumprida a promessa de devolver salários e rendimentos, fixado sem margem para equívocos o empenho no equilíbrio financeiro, a hora é de olhar para o futuro. De ter ambição estratégica muito para lá da manobra táctica do dia-a-dia. Uma apologia que não serve apenas para incentivar a ambição do Governo; ao mesmo tempo, confronta-o com os seus limites e fraquezas.

É fácil perceber porquê. Como o Presidente assinala, o desafio crucial do país passa principalmente por “completar a consolidação do sistema bancário, fomentar exportações, incentivar investimento e crescer muito mais”. Na agenda social, o Governo passa com distinção e continuará a ter todo o apoio do Bloco, do PCP e dos Verdes para continuar esse caminho. Mas mudar o quadro da economia e das finanças parece ser muito mais complicado. Por deficiências e erros próprios, bem visíveis no desastre da gestão da crise da Caixa Geral de Depósitos; por constrangimentos externos, que vão desde o mau momento de Angola à persistente recusa da Alemanha em reduzir o seu excedente na balança externa; mas também pelo bloqueio que os parceiros da maioria exercerão sempre que em causa estejam incentivos às empresas, a aposta na exportação (na qual o Governo tem tido um discurso titubeante, tantas vezes em favor da procura interna), o equilíbrio das contas do Estado ou a criação de ambiente de confiança capaz de atrair o investimento. A irritação com a redução da taxa social única é o prenúncio das dificuldades que o Governo terá de enfrentar sempre que pensar em políticas favoráveis às empresas.

Sendo um drama para o país, esse bloqueio é igualmente um drama para o Governo, que, com o passar do tempo, deixará de poder brandir a vitória sobre o papão da austeridade e precisará de algo de novo para justificar que existe. Se, como previmos na semana passada, não vier aí uma “Geringonça 2.0”, o Governo arrisca-se a vegetar na repetição de um programa cumprido e a degradar o seu estado de graça; se decidir apostar numa agenda mais reformista que vá para lá das curtas ambições para a descentralização ou o interior, que perceba que jamais sairemos da crise enquanto suportarmos um Estado obeso com uma economia anémica, então terá de contar com o final das tréguas do Bloco ou do PCP. Para pedir mais férias, salários mais altos, mais regalias sociais, mais Estado e mais regulação, as famosas posições conjuntas chegam e sobram; para exigir mais energia e determinação à sociedade civil ou para convencer os investidores de que Portugal é um paraíso no actual quadro europeu são insuficientes. Com a triste realidade de uma economia apanhada há 15 anos na armadilha do rendimento médio, os cenários de 2016 são, por isso, difíceis. Para ter uma aposta consistente no crescimento sem pôr em causa a estabilidade política, o Governo vai precisar de um milagre ainda maior do que o que lhe garantiu a sobrevivência ao longo de 2016.

2 – O país deve andar ainda distraído com as rabanadas para não perceber que a aprovação da construção de um aterro de resíduos nucleares no estuário do Tejo, a cerca de 100km da fronteira, é não só uma ameaça à segurança nacional como um acto de insolência que não pode passar sem reparo. Não está em causa nenhuma bravata nacionalista contra a Espanha, nem nenhum pavor milenarista sobre o inverno nuclear ao virar da esquina: é uma leitura do mais elementar bom senso. Como fazem os maus vizinhos, os espanhóis preparam-se para deitar lixo ao pé da porta do vizinho, sem respeitarem as regras europeias que exigem avaliações de impacte ambiental nos dois lados da fronteira, sem darem cavaco a Lisboa, subvertendo garantias negociais e apostando na política do facto consumado. Fariam o mesmo, se Almaraz estivesse perto da fronteira francesa?

Com raras excepções, o caso tem passado ao lado da actualidade – em Espanha nem sequer existe. Mas não é por falta de empenho do Governo. Não é todos os dias que se chamam diplomatas espanhóis em Lisboa para consultas, nem é todos os meses que o embaixador português em Madrid entrega notas de protesto ao Governo espanhol – e Augusto Santos Silva ordenou uma e outra coisa. Também não é todos os dias que Portugal faz queixas formais contra o seu vizinho em Bruxelas, nem é frequente tornar-se pública a ameaça de cancelamento de reuniões, como o fez Matos Fernandes, ministro do Ambiente. Este é um caso de enorme sensibilidade – uma jazida de lixo nuclear no rio que corre até Lisboa é uma questão que merece estudo, cuidado e consulta aos vizinhos. Os espanhóis não ligaram a nada disso. Falar grosso para um país amigo é sempre estúpido, excepto quando se reage a uma afronta. É o caso. 

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