Nova ignorância, velha contradição

Ver o carácter nefasto das "redes sociais" e o triunfo da ignorância nas novas tecnologias é uma posição cheia de equívocos, tanto mais que poupa os media tradicionais a uma crítica necessária.

Na sua crónica de sábado passado, José Pacheco Pereira tratava de uma magna questão: “a ascensão da nova ignorância” como resultado das novas tecnologias, da expansão dos media sociais (ou “redes sociais”, para utilizar a designação mais comum, mas nada rigorosa) e da falsa consciência – a ideologia, portanto – a que elas deram origem. O assunto é pertinente e de uma grande actualidade, mas é muito imprudente – uma imprudência que também já cometi – tratá-lo nas páginas de um jornal: porque os jornais incorporaram a lógica dos media sociais e deixaram de ser um lugar de onde se possa, com legitimidade, criticá-los. O exemplo mais óbvio é o dos colunistas que ocupam o espaço do jornal como quem preside a sessões de chatting e aí marca encontro com a sua vasta comunidade de amigos e inimigos funcionais.

Não cometerei a injustiça de incluir Pacheco Pereira neste grupo. É evidente que ele fala de um outro lugar, mas há alguns equívocos na sua posição. O primeiro advém do facto de esquecer este princípio geral: todos os ganhos e conquistas nos domínios do conhecimento têm como contrapartida ganhos inauditos da ignorância, e todos os cumes da cultura engendraram um novo obscurantismo (Adorno e Horkheimer viram neste processo da razão contra si mesma uma “dialéctica do Iluminismo”, da Aufklärung). Os meios que produzem a ignorância que Pacheco Pereira diz ser “nova” podem ser agora outros, mais numerosos, mais sofisticados e mais massificados, mas longa é a lista de nomes com que, desde há mais de um século, é designada a ignorância e a degeneração da cultura: ela foi, para Simmel, a “tragédia da cultura”,  para Hannah Arendt “a crise da cultura”, para Kracauer as formas inautênticas da “amizade”, para Adorno a “semi-cultura”, para Steiner a “amnésia planificada”, para Michel Serres “o desastre educativo global”. E assim sucessivamente. E tal como não há uma “nova ignorância”, também não é novo querer combatê-la com os instrumentos da crítica da ideologia.

Pacheco Pereira quer manter-se firme no posto que ocupa e onde encontra a sua legitimidade. Esse posto não é o da conversa pública, sobre assuntos públicos, da tagarelice entre amigos e inimigos, mas aquele que desde o Iluminismo é chamado “o uso público da razão”, isto é, o uso que um indivíduo detentor de saber e reconhecido nessa condição faz da sua razão, perante um público letrado, livre de tutelas, adulto, que “ousa saber” e criticar. Instalado nesse lugar que foi durante quase dois séculos a condição de constituição da opinião pública (fruto da República das Letras, isto é, dos livros e publicações impressas), ele pode então reconhecer os sintomas da decadência do saber e da cultura e identificar a “nova ignorância”, num gesto semelhante ao de Adorno, quando este filósofo, num texto de 1959, nomeou e  caracterizou a Halbbildung, isto é, a semi-cultura ou deformação da cultura, enquanto forma dominante da consciência contemporânea, produzida pela potente máquina da “indústria cultural” que aprisiona o indivíduo nas malhas da socialização (na linguagem actual: nas malhas das novas tecnologias e dos media sociais, enquanto ideologia). Mas como pode Pacheco Pereira excluir-se do processo da “nova ignorância”, e denunciá-la, se participa activamente nos meios que a produzem? Terá a ilusão de que uma coisa é o conteúdo do seu discurso e outra é “as relações de produção” (para falar uma linguagem marxista) onde ele se integra? A esta pergunta também me vejo obrigado a responder: não tenho tais ilusões e estou consciente da contradição a que me exponho semanalmente.  

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