Redes sociais, populismo e democracia directa

Basta ouvir Grillo, Farrage, Iglesias, Putin ou Erdogan para perceber que a democracia directa é o caminho mais curto para a demagogia, para a usurpação do poder por uma vanguarda ou para a simples “ditadura da maioria”.

1. Sousa Tavares, no Expresso, e Pacheco Pereira, no PÚBLICO, acabam de escrever artigos muito importantes para uma compreensão ampla e aberta das mudanças e riscos por que estão a passar as sociedades liberais e democráticas. Com efeito, estes dois escritos – que seguem uma linha coerente com o que cada um deles tem dito ao longo de anos – identificam certeiramente alguns dos factores que corroem o valor da liberdade nas democracias.

2. Estas duas crónicas ajudam a explicar, de modo incisivo e claro, o pano de fundo de dois artigos que aqui publiquei antes do Natal e que visavam mapear e explicar a emergência do populismo no Ocidente. Há algo que defendo há muito tempo: o enfraquecimento dos Estados nacionais e do enquadramento democrático das suas instituições resulta de uma transformação da política, do poder, do fenómeno político. Ora, esta transformação tem uma dimensão tecnológica inegável – e, por isso, não subscrevo por inteiro a inversão de factores a que procede Pacheco Pereira. Embora, conceda, que ele tem razão ao chamar a atenção para que as novas tecnologias – no essencial as mais básicas e acessíveis –, até pelo nivelamento intelectual e cognitivo que congraçam, constituem uma causa de crescimento e de disseminação da ignorância e não uma evidência da sua superação. De resto, como ele mesmo há muito sustenta, tudo começou pela televisão. Não por acaso, há bastos anos, Sartori falava no homo videns e na emergência da “vídeo-política”.

3. Voltando ao ponto que queria sublinhar: a revolução tecnológica, entre outras causas, determinou uma alteração da natureza do poder, pelo menos, como o conhecemos desde a Paz de Vestefália e dos inestimáveis contributos de Maquiavel, de Bodin e de Richelieu. A criação do Estado moderno – e do monopólio do poder político que essa criação supõe – assentou essencialmente na territorialização do poder. Enquanto vivemos em sociedades políticas altamente “territorializadas”, o espaço era “uma” ou era até “a” categoria do poder. À medida a que assistimos aos processos de liberalização (no Reino Unido) e de democratização (nos Estados Unidos, na França e por aí fora), esses valores liberais e democráticos também se “territorializaram”. As nossas democracias e as suas instituições estão pensadas segundo uma base e uma lógica territorial. A revolução tecnológica, ao criar uma rede de relações que largamente abstrai do espaço, do território e do lugar, de algum modo, “desvincula” o poder – e o poder político, em particular – desse fundamento territorial. Há como que uma “desmaterialização” do poder e da política. Esta debilitação dos laços territoriais foi acompanhada e potenciada pela facilitação vertiginosa da mobilidade humana, num movimento antropológico já talvez com outro sentido. Um movimento de que poucos dão fé e que aponta para uma cada vez menor “sedentarização” e para alguns laivos de um “neo-nomadismo” humano. O salto tecnológico obriga a repensar a democracia liberal num quadro “pós-territorial” – aquilo a que tenho chamado a democracia “pós-territorial”. Eis uma tarefa dificílima, por subsistir um corte entre os círculos eleitorais em que os cidadãos são chamados a votar (territoriais) e a esfera em que o poder reside e as decisões são tomadas (não necessariamente “territorializada”). Note-se que este problema nem sequer é colmatado com a simples reprodução dos mecanismos tradicionais de recondução do poder de decisão aos povos a um nível de uma entidade transnacional ou supranacional (do género da UE). A mudança do poder é mesmo de natureza e de qualidade, não é de escala quantitativa ou territorial.

4. Mas não era aqui que queria fixar-me: era, isso sim, no ponto das redes sociais – que é o ângulo da mudança tecnológica e social em que se centram os ditos artigos. A dinâmica das redes sociais, com a sua capacidade de penetração na esfera individual e pessoal, veio, na verdade, despertar uma sempre recorrente aspiração: a aspiração da democracia directa. Por um lado, porque hoje já não é uma miragem tecnológica poder reunir todos os cidadãos num fórum ou numa ágora virtual em que, em cada dia e a certa hora, possam deliberar numa enorme assembleia popular, para tudo referendar e tudo plebiscitar. Por outro lado, porque cada computador ou telemóvel se converteu numa espécie de “speaker´s corner” de irradiação global. E não é preciso ler Heródoto ou Aristóteles; basta ouvir Grillo, Farrage, Iglesias, Putin ou Erdogan para perceber que a democracia directa é o caminho mais curto para a demagogia, para a usurpação do poder por uma vanguarda ou para a simples “ditadura da maioria”. E este é um factor maior na erosão e declínio das actuais instituições democráticas, que, não por acaso, são largamente assediadas para substituírem os mecanismos de representação e mediação política por referendos, plebiscitos ou até constantes sondagens e estudos de opinião. Há dez anos, escrevi neste espaço, a propósito da crise do parlamento (lembrando que ela é bem mais grave do que a “crise do parlamentarismo”), que vivíamos sob a “pulsão do directo e do tempo real, a vertigem do imediatismo, o fré­mito da experiência sensorial e da «emoção-comoção», a ge­ne­ralização do «faça-sinta você mes­mo»”. Ora, o império das redes sociais, qual reino das paixões, com as suas pós-verdades, meias-verdades e inverdades, exponencia e eleva à última potência esta voragem da democracia directa. Estimula activamente a “deslegitimação” progressiva de todos os instrumentos de mediação, de representação, de moderação e temperança que fazem parte da cultura democrática e liberal ocidental. Não vale a pena pensar num mundo sem as redes sociais e sem as enormes vantagens e progressos que elas trouxeram. Isso seria uma utopia, que nada resolveria. Mas que o triunfo dos populismos passa por elas e pelo seu admirável mundo novo, ai isso passa!

SIM e NÃO

SIM. António Guterres. O início de funções como secretário-geral da ONU, numa das conjunturas mais difíceis das últimas décadas, não deve deixar de ser assinalado com confiança e esperança na capacidade deste português.

NÃO. Atentado de Istambul no Ano Novo. A repulsa que mereceu o ataque no Bataclan merece o ataque na Reina. O terrorismo e o extremismo não poupam nada: nem sequer os regimes que se querem muscular.

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