Em Seia, sob o calor da electroacústica

A reter destes Dias de Música Electroacústica em Seia fica a experiência única de partilhar, em diálogo aberto, com os compositores que a compõem e difundem, o momento em que a música acontece.

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Elizabeth Anderson na difusão das suas obras Mariana Vieira

Sempre que Jaime Reis instala o equipamento de som, acontecem Dias de Música Electroacústica (DME). Não é que os restantes dias não sejam também de electroacústica, já que o próprio admite que quase não faz mais do que pensar em concertos; mas estes são aqueles em que à volta do director artístico do DME se reunem compositores e intérpretes, estudantes de música e público regular, com o objectivo de fazer a música acontecer. Assim se explica que o festival DME conte já 51 edições, desde a primeira das 32 realizadas em Seia, em Junho de 2006.

A mais recente acabou de acontecer, entre 27 e 30 de Dezembro, compreendendo palestras, workshops, instalações e concertos diversificados – desde electroacústica pura à música mista do duo Noviga Projekto, que encerrou o festival (Clara Saleiro e Manuel Alcaraz, respectivamente flauta e percussão), incluindo uma sessão de videomusic e a participação de jovens estudantes enquanto intérpretes.

Foram precisamente cinco alunos de percussão, entre os 12 e os 17 anos, que abriram o concerto monográfico dedicado ao francês Michel Pascal (n. 1958), perante uma sala cheia e com várias pessoas de pé, entre dois grandes pósteres de duas figuras históricas: Francis Dhomont (n. 1926), cuja Vol d’arondes se ouviria ainda nessa noite, e Jean-Claude Risset (1938-2016), cuja emblemática The other isherwood havia sido escutada no concerto inaugural. 

A partitura desses Cinq études de caisse-claire, para caixa e electrónica sobre suporte, explora diferentes técnicas de execução e potencialidades do instrumento. O material sonoro da electrónica provém integralmente do registo de sons de caixa, reconhecíveis em maior ou menor grau, ora complementando, ora contrastando com a parte instrumental em execução, a qual varia entre a utilização de baquetas (no aro, na pele, com ou sem correntes), dedos e vassoura.

Saliente-se a importância do trabalho realizado, neste âmbito, com os estudantes de música (do Conservatório de Música de Seia, Escola Profissional da Serra da Estrela e Escola Profissional de Artes da Beira Interior), orientado por Aldovino Munguambe e pelo próprio compositor (que difundiu também a electrónica), conferindo-lhes a oportunidade de experimentar desde cedo os meios do seu próprio tempo.

Seguiu-se a peça acusmática Never die (2015), que recorre a sons de água, combinando-os, entre vários outros, com o registo de sons de piano. Após a difusão da peça de Dhomont, numa celebração da amizade deste com Michel Pascal, foram interpretadas duas peças para duo de violoncelos, ambas de 2016: a antestreia de Sinueuses e a estreia absoluta de Circacello (esta com electrónica).

Já na noite seguinte, o contexto era puramente acusmático: uma panorâmica do trabalho da norte-americana Elizabeth Anderson, com uma obra para dois canais espacializada ao vivo e as três restantes originalmente compostas para oito canais, todas elas à volta dos 15 minutos de duração.

O conjunto de obras apresentadas revelou um trabalho minucioso, que prende pela delicadeza da transformação dos objectos sonoros como das trajectórias subtilmente empreendidas. A preocupação da compositora com a percepção do espaço estabelece uma relação directa com o seu trabalho sobre o tempo: micro vs. macro.

Mimoyecques (1994) inspira-se na fortaleza local e combina o recurso a gravações de campo com o registo de 18 vozes masculinas, nas diferentes línguas dos prisioneiros da Segunda Guerra Mundial, na leitura de textos da época. Protopia/Tesseract (2005/07) inspira-se numa viagem intergaláctica, tema que parece interessar a compositora que, em Solar winds... and beyond (2012/14), explora também o cosmos. O concerto terminou com L’heure bleue: renaître du silence (2016), iniciando no limiar do silêncio, com subtis transformações ocorridas no interior de longas massas sonoras em progressivo crescendo, culminando numa sequência de acordes perfeitamente tonais com que a compositora pretende retratar a ascensão ao espiritual.

A reter destes dias em Seia fica a experiência única de partilhar, em diálogo aberto, com os compositores que a compõem e difundem, o momento em que a música acontece. E ela acontece onde tem que acontecer, mesmo numa cidade serrana internacionalmente tão conhecida... graças ao DME.

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