Estado sem resposta para mulheres sozinhas que queiram engravidar com PMA

Regulamentação publicada esta quinta-feira alarga acesso a estas técnicas a todas as mulheres, mas a Sociedade de Medicina da Reprodução diz que centros públicos não têm esperma.

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Responsáveis médicos dizem que, sistema público não tem ainda resposta para as novas beneficiárias Nuno Ferreira Santos

Passa a ser possível a mulheres sem parceiro ou casais de lésbicas começarem a marcar consultas no Serviço Nacional de Saúde para engravidarem com recurso a técnicas de Procriação Medicamente Assistida (PMA), como a inseminação artificial, prevê a regulamentação publicada esta quinta-feira. Mas responsáveis médicos dizem que, na prática, o sistema público não tem ainda capacidade de resposta para as novas beneficiárias.

A regulamentação da lei aprovada em Junho veio dar forma a um regime jurídico que revolucionou por completo o paradigma nesta área. O acesso a técnicas de PMA (como a fertilização in vitro) deixa de ser apenas legalmente permitido a casais heterossexuais em que um dos membros do casal tem diagnóstico de infertilidade, passar a ser entendido como um método complementar de procriação para mulheres saudáveis, independentemente do seu estado civil ou orientação sexual.

A presidente da Sociedade Portuguesa de Medicina da Reprodução, Teresa Almeida Santos, diz que as novas beneficiárias até podem começar a marcar consultas mas, na prática, não estão criadas as condições para dar resposta às suas expectativas. Desde logo porque há um problema de base: os centros públicos não têm esperma para fazer as inseminações artificiais, que a regulamentação prevê como o método de eleição para engravidar nestes casos.

É preciso instalações e pessoal

A médica, que é também directora do centro de PMA do Centro Hospitalar e Universitário de Coimbra, diz que foi criada uma linha de financiamento para criar um banco de recolha de gâmetas, tanto de esperma como de criopreservação de ovócitos, no seu centro, mas diz que esse processo leva tempo a pôr no terreno. É preciso preparar instalações e contratar pessoal. E, mesmo quando a recolha passar a ser possível, o esperma tem de ficar pelo menos seis meses em quarentena.

O mesmo diz Carlos Calhaz Jorge, responsável da Unidade de Reprodução Humana do Hospital de Santa Maria, em Lisboa: “Pode entrar em vigor mas não é concretizável, não há esperma.” Existe apenas um banco público de gâmetas no país, no Porto, que funciona no Centro Materno Infantil, e apenas tem capacidade para fornecer a própria unidade. No privado uma inseminação artificial custa cerca de mil euros.

A regulamentação vem ainda dizer que “é proibida a existência de tempos de espera distintos para os tratamentos de PMA, em função do beneficiário ser casal de sexo diferente, casal de mulheres ou mulheres sem parceiro ou parceira”, para logo a seguir acrescentar “sem prejuízo das prioridades estabelecidas com base em critérios objectivos de gravidade clínica.” Para Calhaz Jorge é óbvio que tem de haver diferenciação dos tempos de espera de acordo com “o princípio da equidade”. O médico nota que já existem tempos de espera diferenciados no sistema actual, de acordo com critérios como a gravidade clínica da situação ou a idade da mulher, explica.

Aumento do tempo de espera?

Teresa Almeida Santos diz que o aumento da procura por parte das novas beneficiárias não só não vai dar resposta às mulheres nos tempos mais próximos, como também vai levar “ao aumento do tempo de espera dos casais inférteis”. “Agrava-se um problema, sem se conseguir resolver o outro”.

No centro que dirige afirma que “a capacidade de resposta está esgotada” e que o tempo de espera para casais inférteis anda pelos quatro meses. “Não tenho capacidade física para fazer mais consultas. Tem de haver reforço de meios humanos, com um biólogo, um psicólogo.”

Na lei anterior da PMA era recomendado o aconselhamento psicológico aos casais, na regulamentação actual a avaliação psicológica ganha nova importância. Os directores dos centros de PMA ganham o direito a pedir uma avaliação psicológica às pessoas que querem fazer PMA. Têm de dar o seu consentimento mas, caso recusem fazê-la, o director do centro de PMA pode recusar o tratamento. A avaliação psicológica terá de ser realizada por um psiquiatra ou psicólogo clínico.

O presidente do Conselho Nacional de Procriação Medicamente Assistida, Eurico Reis, receia que esta avaliação psicológica confira aos directores dos centros “alguma discricionariedade”, nomeadamente podendo criar obstáculos a mulheres que querem engravidar sem parceiro. “Permite que os directores dos centros ajam de acordo com a sua ideologia”, nomeadamente se forem dos que entendem o facto de uma mulher querer engravidar sozinha “como um capricho”. É preciso não esquecer, diz Eurico Reis, que este novo regime jurídico “é uma alteração profundíssima na noção de família. Deixa de se olhar para as famílias monoparentais como uma infelicidade decorrente de uma separação ou de uma perda.”

Quanto à garantia de tratamento em regime de igualdade para os casais infertéis e as novas beneficiárias, o magistrado sublinha que “os recursos do SNS são finitos. O SNS não tem capacidade de resposta”. O que acredita que vai acontecer é que as mulheres sem parceiro e os casais de lésbicas “vão acabar por ser tratados no privado [com comparticipação do Estado]”. A regulamentação prevê que “o Ministério da Saúde possa acordar com os centros privados autorizados o financiamento da utilização de técnicas de PMA.” A regulamentação explícita a existência de centros especializados em inseminação artificial.

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