Que viagem, George Michael, que viagem

Morreu em paz, deitado na sua cama, descreveu o seu agente. Aos 53 anos, morreu George Michael, o ídolo juvenil que lutou com sucesso pela independência artística, o ícone da década de 1980 que, como dizia, teve talento suficiente para viver exactamente como quis.

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Homenagens dos fãs à porta de casa do cantor, em Londres REUTERS/Neil Hall
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George Michael em 1989 Jim Steinfeldt/Michael Ochs Archives/Getty Images

Foi encontrado deitado na cama, em paz. Assim descreveu Michael Lippman, agente de George Michael, a morte do cantor e compositor britânico. E no entanto paz foi sensação fugidia no percurso do músico nascido Georgios Kyriacos Panayiotou a 25 de Junho de 1963, em East Finchley, Londres. Não lidou bem com o sucesso instantâneo e a fama planetária dos Wham!, a banda que fundou com o colega de escola Andrew Ridgeley. Lutou, nos tribunais e nos escritórios da sua editora, pela sua independência e pelo reconhecimento da sua maturidade artística. Viveu em conflito interior até reconhecer a sua sexualidade, perante si mesmo e, mais tarde, na esfera pública, e confrontou-se regularmente com os seus demónios interiores, o que o levou a períodos prolongados de depressão e a ser, em meados da década passada, mais falado pelos escândalos amplificados pelos tablóides do que pela música.

“A polícia de Thames Valley foi chamada a uma propriedade em Goring-on-Thames pouco depois das 14h, no dia de Natal. Tragicamente, foi confirmada a morte no local de um homem de 53 anos. Neste momento, a morte está a ser classificada como inexplicável, mas não suspeita”, lemos no comunicado emitido pela polícia. Pela mesma altura, Michael Lippman emitia também um comunicado. “É com grande tristeza que podemos confirmar que o nosso amado filho, irmão e amigo George morreu pacificamente em casa durante o período de Natal." As reacções não se fizeram esperar. Elton John, o amigo mais velho, disse no Twitter sentir-se em “choque profundo”. Liam Gallagher, o temperamental amigo mais novo, ameaçou as divindades: “É melhor que isto sobre o George Michael não seja verdade." E, dando testemunho da universalidade do músico, o Presidente da República Portuguesa, Marcelo Rebelo de Sousa, enviou uma nota de condolências às redacções onde classificava o cantor como “um artista e compositor versátil e talentoso, com uma longa carreira de inequívoca qualidade”.

À semelhança de muitos dos desaparecidos este ano (David Bowie, Prince, Leonard Cohen), George Michael era uma figura planetária, um ícone transversal cujo apreço está ligado à música que criou, certamente, mas também aos anos em que reinou mais intensamente. Nesse aspecto, em comparação com os nomes supracitados, lendas incontestadas e influentes na história da música popular urbana, a evocação de George Michael no momento da sua morte conduzirá inevitavelmente milhões a chorarem, nostálgicos, os anos 1980 da sua infância e juventude. Sendo inevitável essa reacção, tão inevitável quanto assinalar a terrível ironia de a morte ter chegado no dia de Natal, altura em que, ano após ano, temos o jovem George Michael por perto (e roda mais uma vez Last Christmas, o mega êxito de 1986), a verdade é que ele foi, desde o início, alguém mais complexo e mais interessante do que aparentava o rosto e a pose de estrela juvenil descartável com que se apresentou ao mundo nos Wham!. Bastava que confiássemos nele, como escreveu em Freedom ‘90, a canção que é, muito provavelmente, a sua obra-prima. “Gotta have some faith in the sound/ It’s the good thing that I’ve got/ I won’t let you down/ So please don’t give me up/ Because I would really, really, love to stick around”.

A idade adulta

Filho de um imigrante grego-cipriota e de uma inglesa (ele, ocupado 24 horas por dia em conseguir melhorar a situação financeira da família e muito crítico dos desejos do filho em seguir o caminho da música, ela, a grande apoiante das escolhas do filho), George Michael irrompeu pelo Reino Unido com estrondo em 1982. Foi nesse ano que os Wham! receberam um convite de última hora irrecusável. Uma das bandas previstas para actuar no Top Of The Tops, o mais influente programa televisivo musical inglês, cancelara à última hora e a produção chamou até estúdio o duo que se estreara meses antes com o single Wham rap! (Enjoy what you do). George Michael e Andrew Ridgeley apresentaram o segundo single, Young guns (go for it!) e, no dia seguinte, o estrelato estava assegurado.

Cinco anos depois, George Michael lançava-se a solo. Com Faith, o seu primeiro álbum em nome próprio, o cantor, compositor e produtor de 24 anos pretendia libertar-se da imagem que se lhe colara, pelo impacto juvenil da música dos Wham! e pela desconfiança que tais fenómenos suscitam junto da crítica e do público mais velho. Mas se os Wham! eram banda preparada, vestida e penteada para figurar nos posters que decoravam quartos de adolescentes mundo fora, a verdade é que a sua música mostrava uma clareza pop e um apreço declarado pelo rhythm’n’blues que a tornaram bem mais duradoura do que o habitual no universo das boys bands (comprovam-no Wake me up before you go-go ou Careless whisper – primeira edição a solo de Michael, mas incluída no álbum dos Wham! Make It Big).

Duas décadas antes de Justin Timberlake, para recorrer a um exemplo recente, George Michael conseguia ultrapassar, com distinção, a difícil passagem de ídolo juvenil a músico adulto. Vestido de cabedal, barba de três dias e armado de canções, como Faith ou I want your sex, muito polémica à época, em que a soul ou o rock’n’roll da velha guarda eram substrato dando a florescer música ora tremendamente hedonista, preparada para a pista de dança, ora em forma de balada de coração exposto, o ex-Wham! rivalizou naquele final da década de 1990 com pesos-pesados como Prince, Michael Jackson ou Madonna, que ultrapassava em discos e bilhetes vendidos. Nesse período nascem Faith e Listen Without Prejudice Vol.1, provavelmente os seus álbuns artisticamente mais relevantes, e surge I knew you were waiting (for me), dueto com um dos seus maiores ídolos, Aretha Franklin. No final desse período nasce o primeiro grande conflito aberto da sua carreira, que o opôs à sua editora, a Sony, acusada de desrespeitar as suas ambições enquanto artista e, num gesto que se assemelhava à longa batalha de Prince com a Warner Bros, de o tratar como “escravo” da indústria discográfica.

Enquanto decorria a batalha judicial, George Michael garantia lugar na memória do público através do dueto com Elton John em Don’t let the sun go down on me, registado em Wembley (“ladies and gentlemen, mister Elton John!”), ou da actuação com os Queen no concerto de homenagem a Freddie Mercury, depois da morte deste em 1991.

"Sou gay, fumo erva"

O processo perdido com a sua antiga editora manteve o silêncio discográfico até 1996. Aos 33 anos, George Michael editava Older, de onde foi extraído outro dos seus clássicos, Jesus to a child. A canção era dedicada a um namorado, o designer de moda brasileiro Anselmo Feleppa, que complicações relacionadas com o vírus HIV vitimaram em 1993. Nesta altura, a homossexualidade de George Michael era ainda um assunto privado, cujo conhecimento estava reservado ao seu círculo de amizades mais próximo – mais tarde, diria que não se assumira mais cedo por receio de que a mãe não conseguisse lidar com a pressão que surgiria do impacto mediático.

Em 1998, George Michael é preso por se ter envolvido “em actividades lascivas” numa casa de banho pública em Beverly Hills – fora aliciado por um agente policial à paisana. Na ressaca do caso, tornou pública sua homossexualidade e a relação que mantinha com o empresário Kenny Goss. E respondeu à hipocrisia relevada pelo método de detenção com Outside, single cujo vídeo incluía polícias em uniforme praticando “actos lascivos” (beijavam-se). “Deverá ser possível que eu seja aquilo que sou para pessoas jovens e gay, ou seja, um homem que tem sucesso na indústria há 25 anos”, comentou então, recusando fazer “mea culpa” em relação à polémica. Em 2007, em entrevista à Time Out, declarava de forma inequívoca a sua independência e a recusa em conformar-se ao politicamente correcto, marca da sua postura ao longo da carreira. “Não quero nenhum filho, não quero essa responsabilidade. Sou gay, fumo erva e, devido ao meu talento, faço exactamente o que quero da minha vida."

A música que editou a partir deste período não revela os mesmos méritos artísticos da que a antecedeu, mas George Michael não deixou de ser notícia. Em 2002, retratou Tony Blair como o cão fiel de George W. Bush no vídeo para Shoot the dog – era o seu comentário, feroz na sátira, à intervenção liderada pelos presidentes americano e inglês no Iraque, após o 11 de Setembro. Em 2004 chegou o álbum Patience, que marcou o seu regresso à Sony. Os anos seguintes seriam de grande turbulência, marcados, por exemplo, por prisões por condução sob o efeito de droga – um dia antes de actuar pela primeira vez em Portugal, a 12 de Maio de 2007, no Estádio Municipal de Coimbra, estava a ser ouvido num tribunal londrino. Em 2011, horas antes de um concerto em Viena, foi internado de urgência com uma pneumonia que o deixou entre a vida e a morte. Editou o seu último álbum, Symphonica, em 2014. Já este ano, anunciou a chegada de um documentário sobre a sua vida, Freedom, com estreia marcada para Março de 2017. No momento da sua morte estaria também a preparar um novo álbum de originais com o produtor Naughty Boy.

Há dois anos, respondeu a um questionário do Guardian. “Se pudesse voltar atrás no tempo, onde iria?”, perguntaram-lhe. “A 1981, quando tudo começou a acontecer. Tempos excitantes – que viagem”, respondeu. Que viagem, de facto.

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